Roteiro por Faro entre o modernismo, alta cozinha e uma cervejaria histórica

Faro, a capital do Algarve, está a renovar-se com a força de quem nela quer apostar. Conheça o casal de franceses que recuperou um prédio modernista dos anos 1970, o chef Michelin que põe a Ria Formosa no prato e a nova vida do Café Aliança, o terceiro mais antigo do país.

A beleza da fachada de arte revivalista com influências neoclássicas não deixa ninguém indiferente. Estamos perante o edifício do CAFÉ ALIANÇA, fundado em 1908 como leitaria e que chegou a ser a sede do jornal “O Heraldo”. Após um incêndio o ter danificado gravemente, o proprietário encomendou um novo projeto ao arquiteto Quintas Júnior, cuja obra, entretanto restaurada mais recentemente, se admira na esplanada e no interior.

Depois de um período encerrado, o centenário Café Aliança – tido como um dos três mais antigos do país, a par d’A Brasileira em Lisboa e do Majestic, no Porto – reabriu ao público em maio. Nuno Simões, um dos novos proprietários (do grupo Burgers & Bowls, com restaurantes em Faro e Almancil) assegura que a missão é honrar o património arquitetónico, cultural e memorialístico do espaço, tão acarinhado pelos farenses.

Por isso, mantiveram tudo como estava – das paredes forradas a madeira escura com fotografias de Faro no século XX aos sofás corridos e tetos trabalhados -, até porque o edifício é considerado Monumento de Interesse Público. Já para recuperar a aura de cervejaria que sempre teve, Nuno convocou o chef Jorge Condinho, natural de Loulé.

“Apostamos em petiscos e pratos típicos do Algarve, vendidos a preços justos para os portugueses. Temos polvo com puré de batata-doce e grelos, amêijoas da Ria Formosa com presunto de Monchique, pezinhos de coentrada, carapau alimado, pipis…”. Da cozinha também saem sugestões do dia, como um imperdível xerém de gambas, e o bife do lombo com molho de pimenta verde, brilhante exemplar da oferta de carnes, onde não falta bifana e prego de atum em bolo lêvedo tostado, acompanhados de cervejas bem tiradas.

Ponto de encontro de figuras das artes, da política, da cultura e da economia, em tempos, o Café Aliança chegou mesmo a receber arquitetos (entre os quais se destacou Manuel Gomes da Costa, rosto incontornável da arquitetura contemporânea no Algarve e cujo centenário do nascimento agora se celebra) e outras personalidades do poder local, que se reuniam secretamente para discutir o sistema político de Salazar. “Já que não podiam dizer o que pensavam do sistema, usavam a arquitetura como meio de expressão e contestação”, explica Christophe de Oliveira, empresário hoteleiro radicado no Algarve.

Os donos do The Modernist desenharam um tour pela cidade de Faro com 36 locais (portas, edifícios, fachadas, etc.) ideais para tirar fotografias inspiradas na arquitetura modernista. Em 2027, a cidade quer ser Capital Europeia da Cultura.

Nasceu, assim, o Movimento Modernista do Sul, responsável pela existência de cerca de 500 edifícios com estas caraterísticas em Faro, muitos deles da autoria de Gomes da Costa. A singular adaptação da corrente ao clima regional traduziu-se na utilização de coberturas planas para amparar a chuva fraca, de blocos/grelhagens cerâmicas ou de cimento para proteger as divisões da luz, e de azulejos coloridos influenciados pelo modernismo latinoamericano, levado para Faro por muitos emigrantes.

“O prédio mais feio de Faro”
Christophe e Angelique de Oliveira – ambos de 44 anos; ele filho de conimbricenses emigrados em Paris; ela francesa do lado da mãe e italiana do lado do pai -, são apaixonados pelo modernismo desde que viajaram por Palm Springs e Miami, na Califórnia, e Phoenix, no Arizona. Tanto, que editaram um livro-guia para dar a conhecer a arquitetura modernista aos residentes e turistas em passeios guiados, por eles, a pé. O gosto pela arquitetura surgiu antes, quando, em França, perceberam que era mais difícil alugar do que comprar casa. “A nossa história sempre foi transformar sítios abandonados, mas com alma”, conta Christophe, que em conjunto com a mulher gere uma empresa de aluguer de apartamentos a turistas em Paris.

Foi justamente o que fizeram àquele que era descrito como “o prédio mais feio de Faro”, em pleno centro histórico. Quando lhes falaram de Faro – viviam já no Algarve – veio-lhes à mente uma má impressão, mas assim que viram o edifício logo se apaixonaram, chamando a si a missão de o devolver à cidade passados 30 anos de abandono. Agora, quem dorme no alojamento THE MODERNIST, aberto em junho, está a conhecer uma casa de 1977 da família de um despachante de Lisboa. O alojamento tem seis apartamentos totalmente equipados, um pátio interior e um terraço com vista para o casario e uma nesga da Ria Formosa. Mantendo como inquilinos térreos a livraria Bertrand e a loja da sorte Campião, o casal recuperou a fachada original cinzenta e decorou os interiores seguindo as linhas
modernistas, com divisões abertas, cores monocromáticas e um minimalismo e funcionalismo elevados ao detalhe.

O chef Leonel Vieira com o seu sócio Delfim João. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

A cinco minutos dali, numa privilegiada rua pedonal próxima da marina de Faro, retoma-se o contacto mais direto com a Ria Formosa através da viagem gastronómica proporcionada pelo CHECK-IN BY LEONEL PEREIRA. O chef do antigo São Gabriel (restaurante com uma estrela Michelin em Almancil, fechado há dois anos) mudou-se de armas e bagagens para Faro, aonde muitos clientes fiéis lhe pediam a abertura de uma morada, e o projeto não podia estar a correr melhor, conta-nos ele ao lado do seu sócio Delfim João. Mantendo a “equipa Michelin” garante de elevados padrões, o chef mostra, aqui, uma “cozinha honesta” e pensada para a partilha, aconselhando um casal a pedir entre cinco e seis pratos.

Ao ritmo de uma exímia harmonização de vinhos chegam à mesa propostas frescas – algumas sazonais – como ceviche de ostras da Ria Formosa, poké de lírio em base de quinoa e abacate e filete de cavala assada. Imagem de marca em vários outros pratos é o uso de plantas como a salicórnia e de plâncton em pó. Já no capítulo dos tradicionais algarvios, o chef apresenta a “matança” (cacholeira de porco frita sobre batata e cebola cristalizada), mas há muito mais por onde escolher da extensa carta, que aqui e ali revisita alguns clássicos do seu percurso. O jantar pode bem terminar com um memorável doce de ananás dos Açores grelhado em duas texturas, mas qualquer uma das sobremesas é digna de registo.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

Artigo originalmente publicado na edição de 9 de junho da Revista Evasões, num tema de capa sobre a Ria Formosa.



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