Roteiro por Azeitão: terra de vinhos, tortas, história e arte contemporânea

Na Serra da Arrábida, o vinho corre nas veias de Azeitão desde tempos imemoriais, e é graças à sua produção que a vila continua forte e dinâmica. Mas o leque de atrativos não se esgota no enoturismo. Vai do moscatel às tortas e conjuga a gastronomia tradicional e a moderna, azulejaria secular e arte contemporânea. Uma simbiose perfeita entre o rural e o urbano, a meia-hora de Lisboa.

Submersas em silêncio e escuridão, as mais de 500 barricas de moscatel de Setúbal só se veem graças às luzes tímidas da Adega dos Teares Velhos. “É aqui que eu sinto o peso das gerações. Nós estamos a vender vinhos que o meu avô e o meu pai fizeram e os que estamos a fazer agora são para as gerações futuras”, conta Sofia Soares Franco, rosto da sétima geração desta família de vinhos com quase 200 anos de história, durante uma visita guiada à CASA-MUSEU JOSÉ MARIA DA FONSECA, em Vila Nogueira de Azeitão.

Nesta adega – criada numa antiga fábrica de uniformes dos exércitos português e inglês na época das invasões francesas – estagiam 400 mil litros de moscatel normal, moscatel superior e moscatel roxo. Alguns, a envelhecer ali há mais de 100 anos, já serão “moscatéis de comer à colher”, de tão escuros, espessos e doces se tornaram. Essas raridades, e outras da coleção privada da família, estão guardadas numa sala ao fundo, de paredes empedernidas de pó e teias de aranha, e que só é aberta em ocasiões muito especiais.

“Quando o senhor José Maria da Fonseca se fixou em Azeitão e fundou a empresa em 1834, o moscatel de Setúbal já existia, mas somos o produtor mais antigo do país”, continua a responsável de enoturismo e comunicação. Este vinho fortificado obtém-se parando o processo de fermentação com a adição de aguardente vínica, que lhe dá a doçura caraterística, e, de tão apreciado, rapidamente se tornou um ex-líbris de toda a Península de Setúbal, terroir desta casta por excelência.

José Maria da Fonseca, matemático de Nelas, no Dão, não tinha qualquer experiência em agronomia quando se fixou e apaixonou por Azeitão, mas liderou o crescimento da empresa com uma visão de futuro arrojada para a época. Modernizou a vinha e a adega com a primeira linha de engarrafamento, cuidou da imagem dos produtos, apostou na exportação e criou o vinho Periquita, em 1880, o primeiro vinho de mesa engarrafado no país. Hoje, com 650 hectares em cinco regiões vínicas, a empresa chega a mais de 70 países.

As visitas guiadas à casa-museu incluem provas de vinhos, mas nada como terminá-las no novo restaurante WINE CORNER, aberto em maio com uma carta desenhada pelo chef setubalense Luís Barradas. Trilogia de tártaros, choco frito e a pesca do dia com arroz carolino de limão, bivalves e algas são alguns dos pratos que refletem a mestria da cozinha, coadjuvada pelos vinhos da casa, todos disponíveis a copo. Na carta também há bons cortes de carne e as sobremesas, como a de pera bêbeda com gelado de queijo de Azeitão e crumble de bolacha Piedade, são divinais.

 

As tortas do cego

Tendo a imponente fachada da casa-museu como ponto de orientação, a melhor maneira de partir à descoberta dos encantos de VILA NOGUEIRA é caminhar pelas suas ruas floridas. Qualquer apontamento histórico de relance dirá que Azeitão (cujo nome se deve aos extensos olivais que ali existiam na época árabe) começou a desenvolver-se a partir do século XV com a fixação de famílias nobres, como dão conta muitos palácios, quintas e casas brasonadas que hoje se veem.

Esta terra tem a particularidade de assumir quatro nomes distintos consoante a zona – Vila Nogueira de Azeitão, Brejos de Azeitão, Vendas de Azeitão e Vila Fresca de Azeitão. Em Vila Nogueira, o centro do comércio, serviços e turismo, é obrigatório passar na PRAÇA DA REPÚBLICA, onde está a estátua de homenagem a Sebastião da Gama, poeta e pedagogo que elogiou e defendeu a Arrábida como poucos e tem agora uma nova casa-museu.

Num tributo à atividade vitivinícola da região, admira-se, abaixo, a escultura de um cacho de uvas invertido, e mais adiante surge a IGREJA DE SÃO LOURENÇO, construída no século XVI em estilo maneirista e sóbrio, próprio do ambiente rural, com o interior revestido a painéis de azulejos. Mais à frente, suscitam contemplação os bonitos elementos em mármore e azulejo do chafariz público da FONTE DOS PASMADOS.

Igualmente histórica, mas com outras nuances, é a CASA DAS TORTAS, uma antiga mercearia cuja fundação em 1910 remete para a maçonaria. O espaço sobreviveu no tempo e Paulo Ferreira ainda se lembra de o visitar quando os pais passavam férias na Arrábida. Formado em Economia e após 15 anos de trabalho na TMN, mudou-se para Azeitão e dedicou-se à gestão deste restaurante e de outros. É um dos mais procurados na vila e exibe, com orgulho, todos os moscatéis produzidos na Península de Setúbal.

Enquanto os clientes, muitos deles residentes ou com casas de férias na vila, ocupam as mesas da esplanada, vale a pena pedir o bacalhau na grelha (desfiado) com pimentos e batata frita (serve duas pessoas), e uma coleção de carnes grelhadas, tudo servido em doses para partilhar e a pedir uma harmonização com os vinhos locais. De verão, é aposta também a sopa de gaspacho de base andaluz com presunto, carapau frito, melão, figo, uvas, cebola, pimento, tomate e pão. É uma refeição por si só, mas há que guardar sempre espaço para comer a clássica sobremesa: a torta de Azeitão.

A história deste doce é contada mais adiante na rua, na pastelaria O CEGO. Consta que terá sido trazido de Fronteira, no Alentejo, por um familiar do dono da pastelaria fundada em 1901. A partir do dia em que o doceiro perdeu a visão, os fregueses começaram a ir “ao Cego”. É isto que relata José Pinto, de 58 anos, ele que aprendeu a fazer o doce com o pai e assumiu a gestão da pastelaria, comprada nos anos 1970, depois de ele se reformar. A torta consiste numa massa enrolada e recheada com doce de ovos e é um lanche perfeito, emparelhando com um cálice de moscatel roxo.

Porém, mais do que enaltecer as tortas ou os igualmente famosos esses de Azeitão (bolos secos com aroma e sabor a canela), José Pinto prefere destacar a doçaria que criou e recriou com a sua experiência e criatividade. São eles os pastéis de requeijão de ovelha e amêndoa, os de moscatel e de laranja e também os “memés”, pastéis de massa crocante recheados com requeijão de ovelha fresco e doce de ovos. Igualmente muito pedidos por quem lhes conhece
o sabor e a textura são os “mimos” à base de massa filo, doce de ovos e amêndoa torrada; e os “amores”, suspiro com amêndoa torrada no interior.

A arte dos azulejos

Conhecer Azeitão significa também passar de carro, invariavelmente, pela vistosa adega da BACALHÔA – VINHOS DE PORTUGAL, pertencente ao património de José Berardo, mas fundada por João Pires em 1922. Os visitantes são recebidos por várias oliveiras milenares, e daí para dentro tudo inspira o slogan “Arte, Vinho e Paixão”, visitando-se as exposições permanentes (de momento, só está disponível a da coleção de arte africana) e as
salas onde envelhecem duas mil barricas de moscatel e outros vinhos.

O expoente máximo das visitas guiadas é o PALÁCIO E QUINTA DA BACALHÔA, situado já em Vila Fresca. De estilo renascentista, foi construído no século XV como casa de veraneio de D. Brites, duquesa de Viseu e mãe de D. Manuel I. A arquitetura do edifício, bem como a decoração e jardins, foram influenciados ao longo dos séculos pelos diferentes proprietários, mas o charme manteve-se. Além da casa de fresco com um lago destacam-se a coleção de azulejos portugueses do séc. XV e XVI e o primeiro azulejo datado em Portugal.

O Palácio e Quinta da Bacalhôa ficam em Vila Fresca de Azeitão. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

De azulejos percebe bem Luís Oliveira. Nascido em Setúbal há 60 anos e com mais de metade dele dedicados à cerâmica, abriu a fábrica AZULEJOS DE AZEITÃO no Sítio da Bacalhôa quando quis ser patrão de si próprio. Os azulejos da fachada exterior, com um retrato fantasiado da fauna e flora da Arrábida, são só uma amostra do trabalho de minúcia artesanal que desenvolve com a equipa, fabricando peças segundo as técnicas da corda seca
(árabe), aresta (hispano-árabe) e majólica (italiana).

Dali já expediu encomendas de azulejos para o mundo inteiro – há inclusive uma igreja barroca em Gabão, África, revestida a 12 mil azulejos -, mas a maioria vai para os Estados Unidos. O resto é vendido ao turismo (só em 2019 passaram pela fábrica 17 mil pessoas), numa loja tão profusa e organizada que mais parece um museu de azulejaria de vários cantos do mundo e onde guarda peças únicas. Grupos de crianças e famílias podem também pintar os próprios azulejos e levá-los para casa como recordação.

Já em Brejos de Azeitão, o novíssimo restaurante CHEF STORIES proporciona histórias felizes à mesa. Após 10 anos a cozinhar em diversos países, em casas e hotéis conceituados, o chef Fábio Ramos decidiu voltar para dar vida ao projeto do amigo de infância Fábio Gomes, e o resultado está à vista num antigo armazém brilhantemente recuperado. Na carta, que não se cinge às clássicas steakhouses, há carpaccio de rosbife, hambúrguer de wagyu, tomahawk com 30 dias de maturação e lombo de novilho, entre outras carnes e respetivos cortes, assim como opções vegetarianas, boas sobremesas e cocktails.


O lado pop de Azeitão

Gonçalo Rodrigues, formado em gestão e comunicação e apaixonado pela cultura pop,
mudou-se de Lisboa para Azeitão, onde fixou uma agência de comunicação e marketing e a
loja ATELIER CONCEPT STORE, na rua principal da vila. Prova de que “o mundo pode
caber numa loja” e que as várias gerações têm mais interesses em comum do que se julga são
as reações das famílias que ali entram e se dispersam atraídas por objetos tão diferentes
quanto brinquedos Playmobil de edições especiais; uma bicicleta BMX; uma arcade dos anos
1980; o cubo de Rubik; discos de vinil que vão do heavy metal à bossa nova; e um sem fim
de outros artigos relacionados com cinema, literatura, música, jogos, desporto e até peças de
arte contemporânea.

Em Vila Fresca de Azeitão, a família de Pedro Carneiro criou, por sua vez, a ARTY
COLLECTIONS, uma galeria de arte contemporânea que tem como vizinhos a fábrica de
azulejos e uma loja de decoração de interiores. O objetivo, conta o jovem futebolista e
apreciador de arte, foi democratizar o acesso do público a este tipo de arte, com peças
vendidas entre os 40 e os 20 mil euros, e apoiar artistas emergentes e firmados. Pedro
Marquez (escultor), Alexina (escultora de vidro) e José Vítor e Pedro Botelho (ambos artistas
plásticos) são alguns dos nomes representados. O espaço, de dois pisos, também vende
produtos regionais e artesanato de autor.

Pedro Carneiro é quem recebe os visitantes na Arty Collections, uma galeria de arte inclusiva. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

Onde dormir

A QUINTA DE CATRALVOS, localizada na estrada nacional que liga Azeitão e Sesimbra, rodeia-se de 20 hectares de vinha e prepara-se para recentrar a produção nas suas próprias colheitas com o lançamento, a breve trecho, dos vinhos Catralvos Reserva (tinto) e Blanc de Noir (branco feito com castas tintas). Em termos enoturísticos, dispõe de cinco quartos de decoração rústica, piscina, sala comum e disponibiliza pequenos-almoços em cestos de piquenique. Os planos são de crescimento, até porque o grande foco, a par dos vinhos, são os casamentos, realizados em cénicos espaços exteriores e numa sala com capacidade para 400 pessoas.

 

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