Nos últimos cinco séculos, é inegável a popularidade e a força comercial do Vinho Madeira, elogiado por Winston Churchill, escolhido por George Washington para celebrar a independência dos EUA, em 1776, ou até referenciado por William Shakespeare em algumas das suas peças, como “Henrique IV”. Ainda assim, nem só de fortificados se faz o cenário e legado vínicos da Madeira, como provam os vinhos tranquilos de muitos produtores espalhados pela pérola do Atlântico.
Em busca desta diversidade, partimos rumo à costa sul da Ilha da Madeira, a mais soalheira. No Estreito da Calheta, uma propriedade virada de frente para o Atlântico, com quatro hectares – metade destes são de vinha –, alberga 14 casas rurais em tons terracota, além de uma casa-mãe com seis quartos duplos, e ainda duas piscinas exteriores. Construída no século XVII, a Quinta das Vinhas mantém-se até hoje nas mãos da mesma família e produz cerca de mil garrafas por ano.
Nas vinhas biológicas que rodeiam os alojamentos – algumas somam quatro décadas -, aposta-se em castas como Verdelho, Boal, Malvasia e Bastardo, esta última uma casta quase extinta na Madeira, que vem sendo recuperada. “Se alguém consegue resgatá-la, é aqui no sul da ilha. Temos o melhor clima”, ri-se Isabel Freitas, responsável de produção da quinta, que produz vinhos de mesa e licorosos. Os mesmos que se saboreiam em provas vínicas, abertas a qualquer pessoa, no restaurante Bago, que tem um irresistível terraço com vista oceânica. “É o melhor escritório que já tive”, adianta a responsável. Os solos vulcânicos e a exposição solar dão identidade aos vinhos da casa, entre os quais está o primeiro vinho tranquilo biológico madeirense, o Fanal Verdelho bio 2021, feito em parceria com a Justino’s.
Continuamos pela Calheta, rodeados de fileiras de bananeiras, até uns metros abaixo, mais perto do mar. Há quatro anos, o Socalco nascia inserido num vale de socalcos – ou “poios”, como lhes chamam os madeirenses, com 20 quartos duplos, metade destes incrustados nos terrenos da vinha. Trata-se de um projeto pelas mãos de Octávio Freitas, o chef natural de Câmara de Lobos que venceu, na primavera deste ano, uma estrela Michelin para o restaurante que lidera no Funchal, o Desarma. Todos os quartos têm vista mar e decoração minimalista, para fazer brilhar a natureza que espreita pelas janelas.
O edifício principal tem cinco séculos e ainda mantém o forno original, local onde se fazem atividades gastronómicas com o chef residente, André Gonçalves. O mesmo que assume a liderança do restaurante Razão, onde se aposta no desperdício zero, nas colheitas que chegam da própria horta e no produto fresco do dia. Aqui, serve-se uma “cozinha o mais simples possível”, conta André, para evidenciar a qualidade do produto, em pratos como a mendinha estufada a baixa temperatura com puré de batata, ervas e feijão verde; o pargo da costa com polenta de acelgas, compota de cebola e funcho; o atum amarelo da Calheta com húmus de manjericão, tomate cereja e agrião; ou o carpaccio de vieiras com creme de abacate e flores do jardim da propriedade, como os brincos de senhora.
À mesa provam-se também os vinhos de Octávio Freitas como o Galatrixa, 100% feito com as vinhas em redor, que junta Verdelho, Malvasia e Bastardo, com notas de ananás, banana e líchia. Ou o novo Massaroco 23, um clarete batizado em homenagem a uma planta madeirense, e um blend de Tinta Negra e Merlot.
Pelas vinhas da costa norte
Foi há precisamente dez anos que Maria João Velosa e Marco Noronha compraram um terreno em São Vicente, a meio da costa nortenha da Ilha da Madeira, trocando as carreiras de ambos na banca pelo projeto que aqui iria nascer, o Terrabona Nature & Vineyards, um boutique hotel e wellness retreat rodeado de serra e da floresta Laurissilva. Tem villas T1 e T2 encaixadas em socalcos, com cozinha equipada e jardins de ervas aromáticas. “É o nosso pequeno paraíso”, conta Maria João. Há ainda uma piscina infinita e um spa com vista mar e riacho, além de uma agenda onde não faltam provas vínicas, aulas de ioga, massagens e jantares com chefs convidados.
A aventura nos vinhos chegou depois do alojamento, estando a vinha, agora semi-orgânica, em processo de conversão a 100% biológica. “No início, o vinho era mais um complemento, mas a paixão cresceu”, revela a dona. No catálogo de vinhos de mesa Terra Bona, todos de pequenos lotes, destaque para o monocasta Verdelho, um vinho vegano com estágio em ânfora; e para os rótulos com a casta Arnsburger, com e sem estágio.
Ainda em São Vicente, o cenário de vales verdejantes e vinhas mantém da esplanada da Quinta do Barbusano, da qual se avista ainda o topo da Capelinha de Nossa Senhora de Fátima, situada no topo de uma colina. Este é o maior produtor de vinho madeirense não fortificado, com mais de dezena e meia de rótulos comercializados – entre brancos, tintos e rosés -, uma produção anual de 80 a 100 mil garrafas anuais e mais de 25 hectares de vinha, a maioria aqui, e alguns no Porto Santo. À frente do barco está António Oliveira, natural desta zona, e que fundou a quinta em 2006, um passo natural para um homem que já trabalhava em vindimas, para outros produtores.
O enoturismo chegou em 2018, oferecendo visitas pelas vinhas, provas vínicas e almoços no restaurante da quinta, onde se servem as tradicionais espetadas em pau de louro a ritmo constante, boa companhia à mesa para o bolo do caco torrado com manteiga de alho, mas há outras alternativas à carne, como bacalhau, atum ou cuscuz madeirense com legumes salteados. Presença assídua, os vinhos da casa, como o DOP madeirense Vinhas do António, blend de Sercial, Verdelho e Arnsburger; o Barbusano 100% Verdelho; o Barbusano Tinto, com Aragonez e Touriga Nacional; ou o Fonte d’Areia, com Caracol e Verdelho, entre outros. Qual destes combina melhor com as espetadas? “Todos”, ri-se o proprietário.
Outros brindes pela ilha
No Estreito de Câmara de Lobos, a Vinhos Barbeito é uma produtora com oito décadas, nas mãos da mesma família desde o arranque. Hoje, têm um leque extenso de Vinho Madeira no mercado, com centenas de referências e um caminho longo desde o primeiro rótulo, um frasqueira (vinho premium referente a um ano, envelhecido no mínimo durante vinte anos) de 1978.
Aqui, trabalham-se castas como o Sercial (seco), Verdelho (meio seco), Boal (meio doce), Malvasia (doce) e Tinta Negra (que faz fortificados dos quatro tipos). A uva é comprada a 60/70 agricultores locais e chegam a produzir-se 200 mil litros de vinho licoroso por ano. A extensão da casa pode perceber-se melhor com uma visita guiada pela adega, explicando os processos de vinificação, seguida de uma prova junto à loja da Barbeito.
Ali bem perto, é imperativo parar por uns minutos no Cabo Girão, um dos miradouros mais afamados da ilha, a mais de 500 metros de altura, para apreciar a panorâmica ímpar sobre o Funchal e esta franja da costa sul.
Os próximos brindes fazem-se em Santo da Serra, freguesia do município de Machico. Este ano, os Vinhos Boneca de Canudo assinalam uma década sobre o primeiro rótulo no mercado, mas a paixão de Elsa Franco, machiquense de gema, em trocar a Engenharia Civil pelas vinhas chegou em 2006, quando começou a requalificar terrenos da família. Começaram pelos tintos (castas como Touriga Nacional, Syrah e Merlot) e estenderam-se depois aos brancos (Caracol e Verdelho), cultivando não só aqui, mas também na Porta do Sol e no Porto Santo. O enoturismo é uma aposta recente, permitindo visitar e provas os vinhos da casa, acompanhadas de queijos, enchidos e pão.
Apesar dos petiscos, a hora de almoço vai-se aproximando e o apetite pelos sabores tradicionais da cozinha madeirense levam-nos até à Camacha, a uma distância de vinte minutos de carro. O cheiro do forno a lenha sente-se ainda cá fora, à entrada, uma introdução ao ambiente rústico que a Adega do Pomar mantém – as mesas em madeira, a lareira, a azulejaria com motivos folclóricos e as loiças pintadas nas paredes.
Pelas janelas, espreita-se a serra em redor, mas o que chega à mesa rouba as atenções. Sejam a típica sopa de trigo – robusta, levando carne, enchidos, couves, feijão -, a sopa de tomate com ovo e segurelha, a costela de mendinha, o cabrito na púcara, o atum fresco na brasa, as bochechas de novilho – estas são as mais pedidas por quem aqui se senta a comer -, ou as feijoadas de leitão e de perdiz. O restaurante existe há três anos e, apesar da extensa lista de referências vínicas, vale a pena provar a sidra artesanal feita pela casa.
Provas licorosas no Funchal
No centro da capital madeirense, não faltam locais para explorar o néctar fortificado que faz parte da identidade fixa do arquipélago. Um destes é a adega H.M.Borges, que soma século e meio de vida, e se mantém nas mãos da mesma família há quatro gerações, atualmente gerido por duas primas, Isabel e Helena Borges. Aqui, visitam-se as salas de estufagem e envelhecimento dos quatro estilos de Vinho Madeira, descortinam-se as castas mais usadas, vindas das parcelas de mais de 100 agricultores locais. As provas fazem-se junto à loja, que expõe parte do espólio generoso da casa, que produz 150 mil litros por ano.
Ali perto, a visita segue pela Blandy’s Wine Lodge, que com a sua adega de Vinhos Madeira, trouxe nova vida a um mosteiro franciscano do século XVII. O núcleo museológico explica solos, castas e técnicas de vinificação, mas também se debruça pela arte da tanoaria, relativa à construção e reparação de pipas e tonéis. Os vinhos provam-se no final, testemunho de uma empresa familiar que se apaixonou pelo fortificado madeirense há mais de dois séculos.
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