Roteiro pela criativa Covilhã, entre arte urbana e lugares de bem comer

A própria cidade, abrupta, agreste, montanhesa e travessa, é uma forma de arte. E os planos de quem habita este fascinante território da Serra da Estrela com um passado marcado pela indústria de lanifícios estão a criar uma movida cativante de arte urbana, novos espaços, desafios criativos e ainda mesas onde apetece ficar... ou voltar muitas vezes.

Ir à Covilhã começa a ser bom no próprio caminho, para quem tem que passar pela A25, que, com o seu horizonte de montanhas, há-de ser uma das estradas com a vista mais bonita de Portugal. Depois é bom chegar à Covilhã, tão original é a sua aparição, assim pintalgada na face da montanha. Pronunciada pelo sol de outono, é uma pincelada branca, que se vai desvanecendo para um lado e para o outro da encosta. Entrados no seu miolo, ela captura-nos de imediato: tudo ali é a pique, acentuado e generoso.

É preciso, antes de mais, dar os parabéns à Covilhã por ter sido incluída, em novembro, na rede de cidades criativas da UNESCO e de ser, nessa lista de 295 cidades de 90 países (sete delas em Portugal), a única portuguesa no campo do design. Primeiro ao nível do chão e, pouco depois, ao nível do 11º andar do quarto de hotel, percebe-se que há algo de poderosamente singular nesta terra.

A vista do casario distribuindo-se pelos socalcos abaixo, com a ponte pedonal em traço contemporâneo, projetada pelo arquiteto Carrilho da Graça, a fazer as vezes de salto do pastor do século XXI e unindo a cidade para cá e para lá do fundo vale, é nada menos que arrebatadora. Tal como a própria Covilhã, esta janela que nos concede a fabulosa vista é antiga e nova ao mesmo tempo. O SPORT HOTEL GYM+SPA nasceu no alto edifício, junto ao Jardim Público, onde funcionara desde 1990 o Covilhã Parque Hotel. Antes disso, era ali a Residencial Académica e o bar Guest, com o traço de juventude a ser recuperado nesta nova aposta do grupo empresarial Natura IMB, também dono do Pura Lã Wool Valley e outros três hotéis na região.

A reconfiguração criou uma unidade “a dar ênfase à vocação desportiva da cidade”, explica a diretora comercial, Ana Morais. O espaço interior, concebido por Vasco Pinho, “é muito leve, despojado e simples”, com vários pontos utilitários e uma ala de ginásio e spa, ambos abertos à comunidade. Há bicicletas à vista, porque se podem alugar e ali reparar. Nos 103 quartos, também se respira desporto, com as zonas de vestir e de banho a dar ares de balneário.

A vantagem da localização é evidente, com uma das melhores surpresas desta Covilhã, que parece empenhada em revigorar as suas tradições no presente a surgir ali mesmo na esquina, em frente ao Jardim Público: o restaurante alkimya. O nome feérico tem correspondência com o ambiente interior, ao mesmo tempo delicado, misterioso e rústico, com prateleiras a forrar a parede de alto a baixo, carregadas de velhos livros, instrumentos musicais e garrafas de vinho. Ao perto, o mistério tranforma-se na história daquele lugar que já foi escola primária, biblioteca e ainda é a sede da Banda da Covilhã, que concessionou uma parte do edifício ao restaurante.

O ALKIMYA foi uma das apostas da mudança de vida do casal Jorge Pessoa e Elga Correia, que trocou a carreira na área da tecnologia da informação (ele) e farmacêutica para voltar ao berço, depois de muitos anos fora. Abriram o Natura Glamping na serra da Gardunha, em Alcongosta (Fundão); e, na Covilhã, um centro de ioga e este restaurante, onde começaram a servir também pratos vegetarianos e vegan. Ali quase só entram produtos locais e a chef Sandra Costa faz uma alquimia que impressiona pelo aprumo dos sabores e pela quantidade de pratos tão distintos que consegue criar numa cozinha tão pequena. “Acabamos por não fazer o espaço ideal para a cozinha, mas adaptamo-nos e fazemos milagres”, refere Jorge.

(Fotografia de Miguel Pereira da Silva/GI)

Pouco depois, os milagres desta chef que passou pelo Porto, Albufeira e Gouveia ocupam toda a mesa diante de nós. Os sabores são tão intensos e o aspeto tão cuidado que não se pensa naquilo que quiseram também mostrar: é possível fazer boa comida vegetariana e vegan numa terra de carne. Prova disso são o portobello recheado com legumes e quinoa e o risoto de abóbora crocante com cogumelos, que nos deixam tão satisfeitos como o arroz de tomate com corvina do mar, o lombinho de javali com puré de aipo, espargos e tomilho ou a delícia local panela no forno. Este prato rico de enchidos é a especialidade das sextas.

A carta de petiscos serve como entrada ou vale por si e, nas sobremesas, contamos com um incontornável folhado de requeijão com doce de abóbora, entre outras tentações. À noite, vive-se um ambiente mais de fine-dining, como descreve Jorge; ao almoço, há um menu executivo, por 12,5 euros.

Cá fora, na parede lateral desta casa, virada ao Largo da Infantaria, está uma das 40 intervenções de arte urbana que a cidade foi ganhando, no seu espaço público, há 10 anos, à boleia do WOOL – FESTIVAL DE ARTE URBANA DA COVILHÃ e que se podem conhecer num roteiro próprio, no centro histórico. Naquela parede, está uma obra de Tiago Galo, que representa três figuras da Banda da Covilhã. Wool é a palavra inglesa para lã, que soa um pouco como “wall”, outra palavra inglesa para parede ou muro. Covilhã, cidade da lã, tinha muitos muros para se expressar, entenderam os irmãos Pedro e Lara Seixo Rodrigues e a mulher dele, a catalã Elisabet Carceller.

Em 2011, um apoio da Direcção-Geral das Artes ergueu o projeto das intenções e assim nasceu o festival (que decorre anualmente sem interrupções desde 2017) que tornou as paredes uma homenagem à história da região, ligada à serra, à indústria dos lanifícios, à universidade e ao caráter beirão – patente em murais que representam pessoas locais, como Ernesto Melo e Castro, figura proeminente na poesia experimental portuguesa ou o Sr. Viseu, antigo operário de lanifícios e jogador no Sporting Clube da Covilhã. A primeira obra é de Draw, a segunda de João Samina.

“Tentamos localizar as intervenções no centro histórico, dentro do que seria a antiga muralha, por ser uma zona que estava muito degradada”, explica Pedro Seixo Rodrigues, que é também quem conduz as visitas guiadas, feitas à medida, sem um formato fixo, pelas obras de vários artistas portugueses e estrangeiros. Há-as de Bordalo II, AKACorleone, Vhils, Kruella D’Enfer, Mr, Dheo, Daniel Eim, Add Fuel, Third, Hakd Studio, Tamara Alves, Arm Collective, Bosoletti, Sebas Velasco, Pantónio e muitos outros. Foram todos convidados, explica Pedro, sublinhando o caráter de curadoria do festival. Os artistas passam alguns dias a mergulhar na Covilhã, nos seus lugares, histórias e singularidades. Saber isso faz com que se compreenda melhor a intensidade de alguns murais – como o coração biónico de Third, com músculos e veias a entranharem-se nas máquinas das fábricas; ou ainda a alta parede que Pantónio encheu de andorinhões.

No rol das histórias, pode-se destacar também o impressionante mural do uruguaio Colectivo Licuado, que se inspira na primeira expedição científica à Serra da Estrela, organizada pela Sociedade de Geografia de Lisboa, na qual os pastores guiaram os cientistas. Da rua em frente, na luz do entardecer, o mural parece fundir-se com a serra no horizonte.

É certo que, desde este ano, a plataforma Talk2Me (uma inovação testada ali na Covilhã) permite fazer a visita de forma autónoma, bastando fazer a leitura do QR Code junto aos murais com um smartphone para ver no ecrã a explicação dos mesmos ou até ouvir vozes ou ver vídeos. Ou então, como nos aconteceu, tornar essa possibilidade um extra à companhia de Pedro, fundador do Wool.

(Fotografia de Miguel Pereira da Silva/GI)

Pedro, arquiteto, e a mulher Elisabet, museóloga, fundaram ainda o espaço A TENTADORA, no lugar de uma antiga mercearia com esse nome. É loja, mas também espaço de cowork e dinamização cultural, onde ambos trabalham. Nas prateleiras, há peças de artesanato e design contemporâneo, cerâmica, brinquedos, bijutaria e colecionismo. “Sempre fui um colecionador compulsivo, principalmente de coisas da Covilhã e da Serra”, confessa.

Jaime Rendeiro não é da serra nem da Covilhã, como Pedro, mas rendeu-se a ela quando para ali foi estudar Ciências do Desporto, na Universidade da Beira Interior. A famíla tem raízes alentejanas, mas vivia no Barreiro. “Um dos motivos que me levou a ficar foi o ter-me apaixonado pela serra. Vi que era muito mais do que a neve, tem um território muito vasto, cultura e gastronomia, e até é mais interessante no verão”, sublinha. Um dia, a mãe, enfermeira, disse que gostaria de ter um pequeno hotel e era tudo o que Jaime queria ouvir – em sociedade com o primo Filipe Rogado, comprou, reabilitou e transformou num alojamento de charme uma casa de 1850, ligada ao maior plano que ainda existe da antiga muralha da cidade.

“Vim de um sítio cheio de betão e fazia-me impressão ver este património todo ao abandono”, diz Jaime, que agora gere em família a CASA DAS MURALHAS, um pequeno hotel de oito quartos, piscina exterior de água salgada, pátio com vista, uma sala de estar e ainda, a funcionar para toda a cidade, um restaurante de cozinha de autor baseado nos produtos locais, o BISTRO BAR.

O primo Filipe dedica-se ao restaurante, onde o chef natural da Covilhã Simão Ramos trabalha, com algum arrojo, ingredientes locais e da estação, num pequeno espaço, de ambiente informal, que se tem tornado coqueluche. Ao jantar, a carta é cativante desde as suculentas entradas às sobremesas, mas pode-se também fazer o teste ao almoço, onde há prato executivo por 8 euros, que se pode complementar com vinho a copo.

Coqueluche é também um lugar onde todos nos mandam ir na Covilhã e que, desde há quatro anos, se mantém como restaurante recomendado no guia Bib Gourmand da Michelin. Falamos da TABERNA A LARANJINHA, que fica a poucos minutos a pé da Casa das Muralhas, onde Ricardo Ramos nos acolhe com outra declaração de amor ao território. “Aqui temos tudo e estamos a cinco minutos da natureza”, refere. Ele, que foi “criado atrás de um balcão” dos cafés e mercearias dos pais, estudou hotelaria e no setor trabalhou até pôr de pé o sonho de uma taberna onde se pudesse petiscar com vinho, num ambiente descontraído. Mas as reservas para almoço e jantar sucediam-se.

“Ao fim de três meses, percebemos que as pessoas não queriam um bar de petiscos, queriam um restaurante”, refere. Os petiscos continuam a ser presença forte, mas a substância é sem dúvida marca da casa. Entre os clássicos da Taberna, há a versão própria do pastel de molho, especialidade local, um bacalhau confitado com legumes e ervas, tataki de atum, pernil de borrego com risoto de espargos verdes.

A cada dia, os pratos vão variando consoante o que há passa pelas mãos e pela criatividadedos chefs João Paulo Carvalho e Patrícia Romeiro : na sua época, a cherovia entra em vários deles, até nas sobremesas. Os pratos são bonitos, coloridos, aromáticos e bem cheios. Ricardo, em tendo tempo, é boa companhia e enche-nos o copo com um tinto sublime da Quinta dos Termos, produtor da Beira Interior. Apetece brindar com um dos ditos “covilhocos” que um projeto local, o Ediota, imprimiu em cartazes e postais que se vêem em vários espaços da cidade: Tiú é que ma´putxaz! [Gosto da tua maneira de ser/pensar].


Inew Hand Land, a fábrica entregue às artes

Em 2002, Francisco Afonso teve que tomar, com o pai Júlio, a decisão muito difícil de encerrar a Fábrica de Lanifícios onde trabalhara toda a vida – e que terá sido a primeira da Covilhã, com origens no século XVII. Em 2013, ele e um conjunto de criadores – no qual se inclui a sua mulher artesã Ana Paula Almeida – criaram a Associação New Hand Lab, destinando o imenso espólio (toneladas de tecido e fio, máquinas a funcionar e todo o equipamento) e o enorme espaço (10 mil metros quadrados) à intervenção, criação, exibição e promoção artística. A Fábrica António Estrela/Júlio Afonso é agora o New Hand Lab, que se pode visitar e, em cada visita, percorrer o enorme espaço como uma criança deslumbrada. Nos vários pisos e alas, encontramos o passado industrial de mãos dadas com várias expressões artísticas: há máquinas robustas com restos teatrais, as caixas de transportar fio ainda a criar um palco para um concerto e, um, pouco por todo o lado, peças criadas com fios e tecidos. Teatro, performance, exposições de artistas, concertos, oficinas, conferências, desfiles de moda – ali tudo pode acontecer “tendo como pano de fundo aquilo que é a memória da fábrica e o património”, sublinha o estilista Miguel Gigante, que integra a direção da associação e ali tem o seu atelier de peças de burel. É ele quem nos mostra a ribeira que passa sob a fábrica e tem agora um miradouro digno, ou ainda os vários ateliers e oficinas onde trabalham artistas, designers, um fotógrafo, ou até o antigo gabinete de Júlio Afonso, que era um grande especialista em “debouche”, o desenho técnico do tecido.

(Fotografia de Miguel Pereira da Silva/GI)


Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.



Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend