Roteiro em Vagos: a arquitetura conta histórias (e os cocktails também)

Quinta do Éden, Vagos. (Fotografia de Maria João Gala/GI)
Numa casa gandaresa surgem curiosidades como estas: os rapazes dormiam fora, e a porta da sala que dava para a rua só se abria ao médico, ao padre ou para velórios. Viagem do passado ao presente em Vagos, em modo livre, com direito a praia e bar.

Em 1937, Claudino Domingues dos Santos, que estivera emigrado na América, construiu uma casa gandaresa entretanto convertida em museu regional. A CASA MUSEU DE SANTO ANTÓNIO DE VAGOS é representativa da região, desde logo por ser feita em adobe e organizada em volta do pátio interior, que tanto dava acesso ao lar como a celeiros, currais e galinheiros. A fachada também apresenta um motivo típico: janela-porta-janela, portão e de novo janela. Habitações com aqueles traços foram identificadas um pouco por todo o município de Vagos, independentemente do que se entenda ser os limites da Gândara.

Por norma, nas casas gandaresas, entrava-se pelo portão, que conduzia a um telheiro coberto; ao lado ficava a adega e, por cima dela, o celeiro. Em frente era o pátio em terra, também apelidado de estrumeira. “No outono, ia-se aos pinhais buscar mato para pôr no pátio, que se levava para estrume na primavera”, lembra Manuel Pereira. É membro da direção do Grupo Folclórico de Santo António de Vagos, ali residente, e orienta visitas ao espaço, por marcação.

A Casa-Museu de Santo António de Vagos é uma antiga típica casa gandaresa transformada em museu. (Fotografias: Maria João Gala/GI)

O espaço pode ser visitado, por marcação prévia.

Aquela casa em particular começou por acolher duas famílias (casal e sogros), daí haver duas cozinhas. Quando restou uma só família, a segunda cozinha passou a ser reservada para festas. Na primeira, de uso quotidiano, e centro da vida familiar, havia “um borralho grande, que servia para cozinhar e fazer as chouriças”, explica Manuel. São visíveis o forno para cozer a broa de milho e os cântaros com que se ia buscar água à fonte.

Os tetos de madeira terão sido pintados na década de 1970. “Na nossa zona, no início dos anos 70, foi o grande boom da batata e do leite; as pessoas melhoraram as casas, começaram a construir casas de banho”, contextualiza Manuel. O quarto do casal tinha janela virada para o pátio, “para controlar o que ia havendo”, e diante dele ficava o quarto das filhas. “Os rapazes faziam o quarto no exterior, para poderem sair à noite e ninguém dar pela sua hora de chegada. Podia ser no celeiro. Até conheço pessoas que chegaram a fazer a cama no sótão do palheiro”, observa.

A parte mais nobre da habitação era a sala situada no corpo da frente: a porta que dava para a rua só se abria para receber a visita pascal, o médico ou o padre, em caso de doença, ou para algum velório. Os tapetes são mais um sinal de que, na Gândara, tudo se aproveitava: a roupa velha, já usada e remendada, era cortada em tiras com que as raparigas faziam passadeiras e mantas para as camas. Ao lado, estava a meia sala, ou seja, o quarto melhor da casa, destinado a enfermos, parturientes e noivos à espera de ver construído o próprio ninho.

 

Dos grelos aos cocktails de autor

Claro que nem só de memórias vive a Gândara, que tem sabido atualizar-se e aqui serve de pretexto para um passeio alargado por Vagos. Para já, rumamos à Praia da Vagueira, mais precisamente, ao MARE – RESTAURANTE & GIN BAR, de Maria Pedro Silva e João Real, que inclui referências à Gândara na ementa. Além do “bife gandarez”, há o risoto de bacalhau com grelos, “inspirado no tradicional arroz de bacalhau com grelos”, segundo Maria. E alguns cocktails lançam pontes, igualmente, para aquele território.

É o caso do “Mula da cooperativa”, variação do clássico “Moscow Mule”, aponta o head bartender Flávio Próspero. Combina uma aguardente vínica da Adega Cooperativa de Cantanhede com ginger beer e limão, e é servido numa leiteira, o que, na sua ideia, remete para a produção e o transporte de leite de outrora, assim como para a agricultura. Já o cocktail “206 Av.”, alusivo a uma casa gandaresa específica, mistura vodka, maracujá, limão e licor de amora.

No Mare, há cocktails que fazem ligação ao território de Vagos.

Flávio Prospero é o head bartender do restaurante e bar.

“Gosto muito de trabalhar com inspirações e produtos locais”, prossegue o barman, que já piscara o olho à Gândara noutros cocktails, entretanto sumidos da carta. Essa, entretanto, ganhou a forma de uma brincadeira de infância: Quantos queres? O cliente pode atirar um número, ver que bebida lhe calha e arriscar no pedido. A não ser, claro, que prefira jogar pelo seguro.

 

Caldeirada de enguias e histórias de amor

Neste roteiro por Vagos também cabem sabores tradicionais, e esses têm lugar de honra n’ O BARRACÃO. O restaurante dos irmãos Oliveira – Agostinho, Luís e Mário, o chef – dá continuidade àquele que os pais tiveram, do outro lado da estrada, durante anos. As instalações atuais, com uma sala panorâmica voltada para o rio Boco, um braço da ria de Aveiro, foram criadas de raiz para acolher este projeto mais ambicioso, que até tem agregada uma marca de vinhos e azeite.

Para a mesa vão grelhados e comida de tacho, usando matérias-primas da terra e do mar. Enguias fritas de escabeche, caldeirada de enguias e chanfana de carneiro são algumas das especialidades da casa, que, por encomenda, também serve as típicas sainhas (feitas com redenho de porco) e, em maio, favas com rojões. Às receitas regionais, em alguns casos herdadas da avó e da mãe, os irmãos foram juntando pratos de grelha e outros mais leves, inclusive vegetarianos – para que ninguém fique de fora.

O Barracão é um restaurante familiar gerido por três irmãos.

Enguias fritas de escabeche, caldeirada de enguias e chanfana de carneiro são especialidades da casa.

Os irmãos responsáveis pelo restaurante O Barracão.

Outro negócio familiar que tem crescido é a QUINTA DO ÉDEN, em Calvão, mesmo na fronteira com Mira. Foi ali que, há mais de duas décadas, um casal regressado à terra, após ter estado emigrado, decidiu criar um alojamento numa antiga zona de pinhal. “Quando começaram as obras, passavam aqui carroças, não havia A17… eles estavam no meio do nada”, conta a filha, Tânia Marques. Montar um projeto assim naquela altura “era impensável”, mas assim fizeram. De albergaria, a Quinta do Éden evoluiu para alojamento local, e o próximo passo é passar a hotel, mantendo a abertura a eventos – vocação forte, nascida quase por acaso: um primeiro par de namorados quis casar-se lá, e a fama correu.

Nos trágicos incêndios de 2017, parte do salão ardeu, o que levou a realizar obras e ampliar a oferta. Há um par de anos, a casa ressurgiu com nova face. A cor alaranjada deu lugar a um tom mais neutro, o segundo piso ganhou varandas e os quartos uma aparência minimalista. Já as áreas comuns, no piso térreo, mantiveram o aspeto clássico. “Não queria que o edifício perdesse a essência que tinha quando abriu, em 2001”, conta Tânia, entre o restaurante e o bar. Para lá daquelas portas, há ainda ginásio, piscina e jardins – aí vive Maria, uma pomba branca de estimação, que ficou de um casamento. Pode dizer-se que foi amor.

A Quinta do Éden fica situada em Calvão, na fronteira com Mira.

O alojamento foi remodelado e ampliado nos últimos anos.

Nas ondas com um tricampeão de bodysurf

A Praia da Vagueira mantém a arte xávega e condições privilegiadas para a prática de desportos de ondas. Que o diga Miguel Rocha, mais conhecido como Migas, tricampeão nacional de bodysurf que em 2016 foi diagnosticado com esclerose múltipla, mas não se deixou travar pela doença. A água para ele é terapia e, se já dava aulas a pedido ao fim de semana, no ano passado passou a fazê-lo a tempo inteiro. A pandemia, que virou tantas coisas do avesso, deu-lhe o empurrão que faltava para realizar um sonho antigo: abrir a sua própria escola. Na MIGAS SURF SCHOOL, há aulas para adultos e crianças a partir dos 4 anos, em modalidades que vão do surf ao bodysurf, passando pelo bodyboard e pelo stand up paddle, sem esquecer o skate.

A Migas Surf School abriu no pós-pandemia, com aulas para crianças e adultos.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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