Roteiro em Mira, com um pé na terra e outro no mar

Forja, turismo rural. (Fotografia de Maria João Gala/GI)
A construção em adobe, a arte xávega e a persistência das gentes que tudo faziam para tornar produtivos os solos arenosos são parte da história da Gândara, um território com muito para descobrir - a começar por este seu coração, Mira.

“O coração da Gândara” – eis o que se lê à entrada de Mira, o único município integrado por inteiro nesse território de planura, que abrange também partes dos concelhos de Vagos, Cantanhede, Montemor-o-Velho e Figueira da Foz. As opiniões de diferentes autores parecem divergir quanto aos limites exatos de uma sub-região que tem como vizinhos a Ria de Aveiro, a Bairrada e o Vale do Mondego; mas para a viagem pouco importam, que ela faz-se muito de pretextos para boas descobertas, e isso implica escolhas e pequenos desvios. Certo é que se trata de uma faixa litoral cuja paisagem sofreu grandes transformações. Se hoje exibe pinhais e terrenos de cultivo, em tempos foi um deserto de areias móveis, com pântanos pelo meio. Em 1917, começou a ser posto em prática um plano para drenar, fixar e arborizar as dunas – um trabalho longo, executado por centenas de homens.

Aqueles e outros dados relacionados com a geologia, a arqueologia e a etnografia podem ser encontrados no MUSEU DO TERRITÓRIO DA GÂNDARA, bem no centro de Mira. Funciona como porta de entrada no território, e para contar a sua história tanto recorre a imagens como a excertos de obras literárias. Há um filme dos anos 1950 onde se vê os antigos palheiros da Praia de Mira. E o documentário de 1959 “Onde os bois lavram o mar”, de Adriano Nazareth, que mostra a faina e a vida dos pescadores, os barcos em forma de meia lua e os bois a puxar as redes na arte xávega – que subsiste, mas agora com auxílio mecânico. “Que estranho país é este onde os bois vão lavrar o próprio oceano?!…”, lê-se n’ “Os Pescadores”, de Raul Brandão.

Museu do Território da Gândara, no centro de Mira. (Fotografias de Maria João Gala/GI)

O museu foca-se na geologia, arqueologia e etnografia da Gândara.

Não se perde de vista a costa, mas falar da Gândara de outrora também é falar de uma população agrícola pobre, sofrida, que se socorria de tudo para fertilizar os campos pouco produtivos – dos excrementos bovinos deixados nos caminhos ao moliço retirado da ria em barcos rudimentares, chamados matolas. E da construção assente em tijolos de adobe (uma mistura de areia, cal e água). Os adobes eram feitos no local onde ia nascer a casa ou perto, num trabalho coletivo, que implicava escavar o solo em busca de matéria-prima, amassar, moldar e, por fim, deixar secar. Com eles se fazia poços, muros e as tradicionais casas gandaresas, semeadas pelas ruas e facilmente identificáveis. A fachada é habitualmente composta por uma janela, uma porta, outra janela e um portão que dava acesso ao pátio interior, pelo qual entravam os carros de bois. A lavoura tinha tal peso na economia familiar, que essas habitações térreas, com planta em L, funcionavam como sedes agrícolas.

Se já dá gosto apreciar de fora aquela arquitetura, que tal dormir numa casa gandaresa renovada? Ou em duas. O casal João Luís Pinho e Sofia Sousa começou por abrir, em 2015, a CASA DA LAGOA, que pertenceu aos avós dele; e há um par de meses inaugurou um segundo turismo rural na mesma localidade: a Lagoa. Desta feita, João e Sofia recuperaram e ampliaram a casa dos bisavós dele, cuja história remonta a 1906, quando foi posto ali o primeiro adobe. Chama-se FORJA, em alusão à atividade do bisavô, que era ferreiro (fazia alfaias agrícolas, e também peças para a construção naval). Os dois projetos comunicam entre si pelas áreas exteriores das traseiras, que, além de garantirem privacidade, têm um pequeno pomar de onde sai fruta para as compotas do pequeno-almoço.

Forja nasceu da renovação de uma casa gandaresa.

A Casa da Lagoa abriu em 2015.

 

Comida de tacho, massagens e animais à solta

A cozinha gandaresa era marcada por sabores da terra e do mar, e esses continuam a cruzar-se n’ A TABERNA DA VILA MARIA, na Praia de Mira. A ementa varia consoante o que chega de fresco e acaba de ser atualizada, explica Pedro Simãozinho, tornado cozinheiro muito graças aos avós Maria Fernanda e José, que começaram por ter uma taberna e depois montaram ali um restaurante. “Não tenho formação nenhuma em cozinha, o que faço é da minha cabeça”, conta Pedro, que tanto prepara línguas de bacalhau panadas e amêijoas, em jeito de entrada, como comida de tacho. Arroz de lingueirão, massada de garoupa ou bochechas de porco preto grelhadas a carvão são algumas das possibilidades, a completar com as sobremesas da mãe. Das mãos de Maria Bonina saem desde bolo de bolacha até folhado de abóbora.

Pedro Simãozinho com o arroz de lingueirão d’A Taberna da Vila Maria.

O restaurante fica situado junto à Praia da Mira.

Depois do doce, o salgado. Caminhando em direção às ondas, chega-se à loja GÂNDARA, decorada com utensílios agrícolas, da foice à velha máquina de sulfatar, aponta Nicola Cravo, responsável pelo negócio, a par com Cátia Teles. A casa privilegia produtos portugueses, muitos deles pensados para oferecer, tanto que faz cabazes personalizados. Há cervejas artesanais, vinhos e hidromel, também produtos alimentares biológicos e veganos, inclusive sem glúten. E ainda cosmética natural, brinquedos de madeira e artesanato com reaproveitamento de materiais. Alguns trabalhos de costura são feitos pela própria Cátia, que em miúda passava férias na Praia de Mira, a única zona balnear do Mundo com Bandeira Azul desde 1987.

Cervejas artesanais, vinhos, hidromel, cosmética, brinquedos de madeira e artesanato fazem parte dos produtos da loja Gândara.

Ora, Mira continua a ser destino de lazer, e não somente à beira-mar. Muitos dos que chegam à QUINTA DA MAFALDA, na localidade de Lentisqueira, vão atrás do sossego e do contacto com a natureza. Quem o diz é Helena Távora, responsável por aquele alojamento numa área de cinco hectares que já foi, em parte, usada para cultivo, e atualmente tem trilhos, um lago e gamos à solta. A esses bichos com “um coração na cauda”, como descreve, juntam-se patos, gansos e outros animais. Nos meses mais quentes, a propriedade recebe sessões e retiros de ioga, e ao longo de todo o ano há massagens de relaxamento disponíveis, por marcação. Os hóspedes podem escolher entre cinco quartos, com piso radiante e casa de banho privativa, e têm acesso a áreas comuns, incluindo uma piscina interior aquecida.

Em Lentisqueira, a Quinta da Mafalda é o alojamento na natureza que soma cinco hectares.

Um dos cinco quartos da Quinta da Mafalda.

Claro que tudo é pretexto para aproveitar o ar livre – por isso há mesas lá fora. Tanto se pode cozinhar como mandar vir refeições para comer ali, ao abrigo de parcerias com casas vizinhas, como o RESTAURANTE PRIMAVERA, conhecido sobretudo pelo bacalhau grelhado com batatas a murro. Na prática, a ementa resume-se a dois pratos: esse e um de carne (febras ou costeletas de porco). À sexta, ao sábado e ao domingo existe ainda outra opção: costeleta de novilho. Por encomenda, e para um mínimo de seis pessoas, também se faz galo de chanfana ou vitela de chanfana, explica João Santos, neto dos fundadores, Lídio e Leontina. O Primavera teve origem há mais de meio século, numa casa gandaresa, na aldeia de Colmeal. É uma de muitas histórias germinadas, na Gândara, por força de braços e vontades.

A família responsável pelo Primavera, restaurante que já soma meio século.

O bacalhau grelhado com batatas a murro do Restaurante Primavera.

 

Em terra de grelos nasceu uma confraria

Carapelhos, freguesia do concelho de Mira, destacou-se pela produção de grelos de nabo, que continuam a ser apanhados à mão e exportados para países como França ou Suíça – o chamado mercado da saudade. Essa verdura é o cartão de visita da aldeia e dá nome à CONFRARIA NABOS E COMPANHIA, criada para “defender a gastronomia da Gândara, mas também o seu património cultural e arquitetónico”, explica o grão-mestre, Nuno Janicas, em frente à sede. Ele, que é filho de comerciantes de grelos, conta que os mesmos constituem um produto versátil e bastante presente na cozinha gandaresa, misto de terra e mar – nela cabem carnes de galinha e porco, peixes da costa e enguias da ria. Comer vaca era “um luxo, porque ela era precisa para trabalho e leite”, contextualiza. Exemplos de pratos tradicionais são a caldeirada de enguias, o pitéu de raia ou a sardinha na telha. Este último costuma ser confecionado durante a Feira dos Grelos, no terceiro fim de semana de maio.

Nuno Janicas, grão-mestre da Confraria Nabos e Companhia.

Os grelos de nabo, versáteis e presentes na cozinha gandaresa.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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