A poucos metros da Cova da Iria – onde em 1917 três crianças terão visto a aparição da Virgem Maria – há um lugar feito de luz e charme, como nenhum outro em Fátima. É aqui que começa a nossa viagem, feita de descoberta. O LUZ CHARMING HOUSES é mais do que um hotel: é uma pequena aldeia, onde as casas são inspiradas na arquitetura local do final do século XVIII, até à década de 1930/40, pós-aparições – as casas que o mundo conhece de todas as imagens de Fátima, nomeadamente dos filmes e documentários onde aparecem representados os pastorinhos e respetivas famílias. Afinal, o proprietário, Pedro Augusto, descende, ele próprio, da família de Lúcia, Francisco e Jacinta Marto. “A evolução cronológica consegue perceber-se nas casas através da forma como a pedra é trabalhada”, conta à Evasões a mulher, Ana Alves, arquiteta de profissão. E esse cuidado é colocado, afinal, em cada pormenor do hotel, em cada recanto, desde a construção à decoração. Fez agora sete anos que o Luz Houses abriu as portas, que aquele lugar – também contido nas memórias da irmã Lúcia – mudou a vida do casal. E de certa forma muda também a de quem experimenta ficar ali, nem que seja por uma noite: passear entre os jardins e a horta biológica, onde moram até algumas ovelhas, cabras e outros animais, numa homenagem à pastorícia; aproveitar a zona de lazer com uma piscina única, feita em pedra da região da serra de Aire e Candeeiros, com um peculiar bar de apoio: um antigo quiosque de Lisboa, transportado para Fátima. Ana, sobrinha-neta do pintor Jacinto Luís, viu-o num livro que o tio lhe ofereceu e namorou-o durante meses, até o levar à certa. O mesmo aconteceu com as carteiras-mesas da “escola”, que é afinal a sala de reuniões do hotel.
Para quem sonhou um dia ser bailarina, há sempre minúcia e delicadeza em tudo o que faz. “Há muitas pessoas que vêm só para estar, para usufruir do espaço. Foi também por isso que há um ano abrimos o restaurante”, conta. E lá, onde apenas se servem jantares, a chef Sílvia surpreende com um menu de degustação, que começa com uma entrada de ovo e salmão, ou creme de queijo firme com alecrim e mel, e continua com robalo do mar com polenta frita e molho de cebolinho; barriga de leitão com gomos de abóbora assada e tomilho, tudo com molho de laranja. No final, qualquer uma das sobremesas. Tal como haveremos de confirmar ao longo desta viagem pela gastronomia da região, a Escola de Hotelaria de Fátima tem deixado muitos e bons frutos espalhados pelas cozinhas e salas dos hotéis e restaurantes. Sílvia Santos é um desses exemplos. Ir ao Luz Houses e não experimentar um dos seus pratos é imperdoável.
A partir da ermida – um espaço onde se pode meditar, dentro da propriedade – é possível percorrer um caminho meditativo pelo meio do bosque, passando pelo Monte dos Valinhos e Aljustrel (a aldeia dos Pastorinhos) até ao CALVÁRIO HÚNGARO. Este é o ponto mais alto da via sacra, e a partir dali pode avistar-se uma imagem bem diferente do Santuário.
Do Museu de Cera aos “Rostos de Fátima”
A história dos irmãos Jacinta e Francisco Marto, canonizados em 2017 pela Igreja, e da prima Lúcia (cuja beatificação está em curso) que entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917 terão assistido a várias aparições de Nossa Senhora, está por toda a parte, de uma forma ou de outra. Desde 2017, quando o Papa Francisco veio a Fátima a última vez, há no recinto do Santuário uma estátua de grandes dimensões em memória das duas crianças, que morreram na sequência da gripe pneumónica. Por estes dias, e até 15 de outubro, é imperdível a exposição temporária “Os Rostos de Fátima”, na zona inferior da BASILICA SANTÍSSIMA TRINDADE, também ela de visita obrigatória no Santuário. O arquiteto grego Alexandros Tomazis assinou este projeto, mas há também intervenção de outros, como o português Siza Vieira (são dele os azulejos da Galilé dos Apóstolos) ou o alemão Robert Schad, autor da Cruz Alta, no exterior do edifício.
É no MUSEU DE CERA, no centro da cidade, que é possível percorrer o tempo e o espaço dos Pastorinhos, e do país, afinal. São 32 cenas e 120 figuras, explicadas ao visitante por Ricardo Silva, um filho da terra regressado há pouco e convertido ao turismo. O museu existe desde 1984 e tem vindo a adaptar-se aos sinais dos tempos. Exemplo disso é a imagem do Papa Francisco, que permite uma pose para a fotografia ou para a selfie, ao contrário de todas as outras figuras e cenas, distantes do visitante.
Para sempre Tia Alice
Numa terra rendida ao divino, o TIA ALICE é para muitos um santuário da gastronomia. Alice Marto tem agora 86 anos e já não passa 14 horas de pé, ao fogão, como fez grande parte da sua vida, até ganhar uma estrela Michelin, “sem saber como”, como ela própria faz questão de contar à Evasões. Mas os seis filhos continuam a manter de pé o restaurante que ela abriu, em 1988, “sem mexer grande coisa na ementa”, conta António Clemente, um dos dois rapazes. Lá fora, no jardim que serve de “sala de espera”, as camélias ainda guardam todo o esplendor da primavera, cheira a tomilho e alecrim. Cá dentro, serve-se o tradicional bacalhau da Tia Alice, no forno, com molho bechamel, ou a eterna vitela assada no forno, o cabrito, ou o arroz à trasmontana. “Tudo o que fazemos é uma representação da cozinha tradicional portuguesa”, explica António, antes de servir o melhor bolo mousse de chocolate.
De Fátima “velha” (como lhe chamam os habitantes) até ao centro da cidade, são apenas uns minutos. E no meio da profusão de lojas de santinhos, velas e todo o tipo de bugigangas, há um oásis exótico: a marisqueira APOLLO PRIVÉ. Jaqueline e Luís Silva pensaram-na ao pormenor, chamaram uma decoradora profissional, e o resultado foi melhor do que esperavam. Mas se é verdade que “os olhos também comem”, a verdade é que o segredo mais privado do Apollo é mesmo a qualidade do marisco que serve à mesa, cuidadosamente confecionado. Quando a mariscada chega, é difícil escolher por onde começar: ostras, gambas grelhadas, lagosta, camarão frito, mexilhão com molho de escabeche, entre outras variedades. A ameijoa à bulhão pato é ímpar. E depois, o arroz de lavagante. Há quem venha do país vizinho de propósito para repetir, porque depois de provar o marisco ali, é difícil não voltar a pecar, uma e outra vez.
O Rito, uma pérola em Ourém
Há quem chame a Fátima a joia de Ourém. Porque a cidade é, afinal, uma das freguesias do concelho da antiga Vila Nova de Ourém, onde abundam quintas brasonadas, algumas adaptadas a turismo rural. Mas o que a Evasões encontrou na sede de concelho é o bastante para justificar uma visita só por si: subir ao CASTELO, que alberga uma vila medieval, desconhecida por muitos. Há ainda casas habitadas, algum comércio, e entre as ruas estreitas a Capela de Nossa Senhora de Conceição, o posto de turismo (antigo edifício da Câmara) ou o Paço do Conde. Dali se avista toda a cidade, aos pés da vila, e dali partimos para o Alqueidão, onde encontramos a pérola gastronómica deste roteiro: o restaurante o RITO, fundado em 1974. É abril e espera-nos uma revolução de sabores tradicionais lá dentro, num dia ainda fresco, e por isso de lareira acesa, num canto oposto ao piano, que está sempre ao dispor de quem souber tocar. “As pessoas sentem-se em casa, e acaba por ser um ambiente de amigos” – acolhedor, quer dizer Bruno Rito, que toma agora conta da sala, enquanto das mãos da mãe, Maria Amélia, saem delícias como um inigualável arroz de grelos com carapaus fritos, caldo de garoupa com massinha de coentrada e ovos escalfados, ou a velha molhanga de bacalhau. São pratos “muito antigos, feitos de forma tradicional, preferencialmente no forno a lenha, quando são assados, por exemplo”, conta Amélia. Há quem venha de longe para provar os seus cozinhados, e isso enche-a de orgulho. No caso de Bruno, é a garrafeira que ocupa esse lugar de destaque. Foi pioneiro a criar o conceito em Ourém (a partir de uma ideia que viu no Brasil) e agora muitos a replicam na região: uma sala onde os clientes entram para escolher o vinho que vai para a mesa.
O pão que ela amassou
Entre Ourém e Fátima as linhas com que se cosem os dias são as mesmas com que se coze o pão de Sandra Frazão. Deu-lhe o nome de “LINHASDELA”, do tempo em que se dedicava ao tricot e ao crochet. Durante a pandemia, esta contabilista descobriu a fermentação lenta e natural como forma de fazer pão. Pesquisou muito, e descobriu que era por ali que queria investir o pouco tempo que lhe sobrava, ao cabo do teletrabalho e do completo papel de mãe de três filhos. O pão que faz precisa de “trigo, água e tempo” – simplifica, além da fermentação natural. Nas redes sociais vai comunicando com os clientes, anuncia os dias em que coze e faz entregas, e aguarda neste momento a licença da Câmara de Ourém para poder começar a vender em feiras, o negócio que lhe interessa. Mandou vir um forno, e adaptou a cozinha da sua casa a este mini-negócio. Com uma lâmina, faz uns originais desenhos no pão. Em Fátima e arredores, está a tornar-se um caso tão sério de sucesso quanto saboroso.
A nossa viagem termina como começou: com a imagem da virgem Maria, que há 105 anos mudou a história desta região, fazendo nascer hotéis e restaurantes em cada rua, comércio e serviços. A marca TREZE, afinal, desse fenómeno. Desde 2015 que Sofia Neves escreve com êxito as letras da marca Treze, que mostra Fátima ao país e ao mundo através de imagens pouco vulgares, em diversas cores, moldes e feitios. Na Marfilar (fábrica de artigos religiosos e decorativos) já trabalharam dezenas de pessoas, agora o quadro de pessoal está resumido à família. Ironicamente, a empresa nunca foi tão conhecida – especialmente depois de Sofia ter ido trabalhar com os pais, convencendo-os a produzir a imagem de Nossa Senhora em cores: azul, verde, rosa, cinza ou lilás. Faz venda direta ao público, mas vende sobretudo online. Foi assim que começou esta aventura. Com a imagem de Maria, a mulher que mudou tudo em Fátima. De resto, como em cada uma das casas por onde passámos, já a prepararem-se para celebrar o maior acontecimento religioso do país, o primeiro sem restrições desde a pandemia: este 13 de maio.
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