Roteiro em Alcobaça: viagem à terra dos doces conventuais

Roteiro em Alcobaça: viagem à terra dos doces conventuais
(Fotografia: Maria João Gala/GI)
Por estes dias, Alcobaça é mais que um amor de perdição. Desde a história de Pedro e Inês que a cidade está envolta nesse clima de romance, pois não faltam motivos para gostar dela: a louça, os doces conventuais, as chitas. As maçãs. Como diz a canção, quem passa por Alcobaça não passa sem lá voltar.

Alcobaça tem tudo para crescer. Só precisa que as pessoas se envolvam”, Liliana de Sousa usa a frase como espécie de mantra para nunca desistir da terra que é sua, aquela onde cresceu e escolheu para viver. É no coração da cidade que esta ceramista vai criando as peças mais originais, em grés, a partir de uma oficina instalada na Casa Mestre João Santos, o artesão a quem Alcobaça presta ainda homenagem.

É uma forma de perpetuar a história local, em que a faiança assume um lugar especial. Em menina, Liliana ficava a observar o pai, enquanto ele pintava de azul aquela louça típica. Talvez tenha sido aí que nasceu a paixão por moldar peças e daí lhe veio a inspiração para “Azul Blue – Contaminação do Pensamento”, a exposição que no verão passado esteve patente na galeria local, 5.o piso. É uma das 20 ceramistas que integram o Coletivo 3 Cs, uma associação de cerâmica contemporânea criativa que ali tem espaço cativo, na casa João Santos. Dali avista-se boa parte do percurso camoniano Pedro & Inês, que nasce de uma interpretação do episódio de Inês de Castro n’Os Lusíadas, a partir de dez peças típicas das cerâmicas de Alcobaça, cada uma delas a cargo de uma indústria. No seu conjunto, as fábricas (que ali promoveram um território de expressão cerâmica artística a partir do século XIX) traduzem naquele percurso à beira-rio o universo literário e simbólico do amor proibido deste casal imortalizado no Mosteiro de Alcobaça, património da Humanidade.

A Casa Mestre João Santos – Oficina De Artes (Fotografia: Maria João Gala/Gl)

Dali chega-se num instante ao Jardim do Amor. Numa parede que separa o rio Baça daquele recanto, há pequenos cofres que guardam mensagens de amor. Os kits podem ser adquiridos no comércio local, e assim fazer crescer aquela torrente dos namorados, ladeada também ela por originais peças de louça.

A cidade é um hino à Arte Deco, que se encontra por toda a parte, em edifícios públicos e privados. Essa é uma das formas de a saborear, outra é mais literal. Por estes dias, a terra engalanou-se para acolher a XXI Mostra Internacional de Doces e Licores Conventuais (14-17 de novembro), um momento alto da doçaria que ao longo de todo o ano se pode provar naquelas ruas históricas, graças à herança culinária dos monges de Cister e as monjas de Cós deixaram, de frente para um dos mais belos monumentos portugueses – o Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça.

Elevado a património mundial da UNESCO em 1983, este mosteiro foi uma das primeiras fundações monásticas cistercienses em território português. No último ano, o monumento foi visitado por mais de 270 pessoas, número que duplica quando se inclui a igreja, de entrada livre.

A maioria dos visitantes não teve acesso a um dos segredos mais bem guardados: a sacristia da igreja e a capela Relicário. “É de uma beleza ímpar”, conclui Ana Pagará, que há seis anos dirige o mosteiro, em nome da Direção Geral do Património. E é ela que nos guia numa visita a esse lugar mágico: o políptico barroco de talha dourada e policromada alberga 89 esculturas relicário, recolhidas em nichos distribuídos por seis níveis. É possível visitar-se, com um bilhete que acresce ao normal, para visita de todo o mosteiro, mas sempre acompanhado de um técnico da sua equipa.

 

Da Alcôa, com amor

Paula Alves não tinha planeado passar a vida entre doces de ovos e fios caramelizados. Mas quando o marido comprou a fábrica (e mais tarde o balcão) da pastelaria Alcôa, no início da década de 80, casou também com o universo da doçaria conventual. “Não sou nada vaidosa comigo, mas tenho uma vaidade do tamanho do Mundo nesta casa, nesta marca”, conta, a poucos dias de mais uma mostra de doces conventuais, evento que também ajudou a construir.

Pastelaria Alcôa. (Foto: Maria João Gala/GI)

Fundada em 1957, a pastelaria Alcôa atrai, só por si, muitos visitantes. São as cornucópias (que ainda recentemente estiveram a concurso nas 7 maravilhas doces de Portugal), as castanhas de ovos, as queijadas do céu, mimos de freira, ovos do paraíso, torrão real, manjar dos deuses, o toucinho-do-céu, entre outros que fazem uma vintena de doces conventuais ainda hoje confecionados como no tempo das monjas de Cós. “Habituámos os nossos clientes a criar um doce todos os anos, para a mostra”, acrescenta Paula Alves, que guarda para este fim de semana a libertação desse segredo.

A vida pode sempre surpreendê-la, mas dificilmente tanto e de forma tão marcante como aconteceu em 2017, quando teve a honra de fazer os doces que o Papa Francisco provou durante a sua estadia em Fátima, no centenário das Aparições. Foi nessa altura que nasceu a coroa abadessa, um bolo feito à base de amêndoa, avelã e gila, decorado com fios caramelizados “que simbolizam o abraço e os afetos que o Papa Francisco nos dá”. Depois Alcobaça, a Alcôa abriu balcões em Lisboa, no El Corte Inglés e no Chiado. Mas é ali o coração da doçaria conventual (e regional), e é ali que Paula gosta sempre de voltar, devota do Mosteiro (que admira todos os dias; tem predileção pela enorme cozinha) e da cidade.

 

São chitas, senhor

É na Praça 25 de Abril, de frente para o mosteiro, que fica outra relíquia do comércio local – a loja Made In Alcobaça, dedicada à chita, o tecido a metro que faz parte da identidade local. Florbela Costa atravessou o país desde Trás-os-Montes para reinventar esse “pano de Alcobaça, de inferior qualidade” (como lhe chamou Gil Vicente na Farsa dos Almocreves, pois panos finos faziam-se na Covilhã).

A loja Made In Alcobaça (Foto: Maria João Gala/Gl)

Há 20 anos, quando chegou à cidade para trabalhar na indústria de louças, não imaginava que o destino lhe estava traçado nos padrões da chita. Quando a desafiaram para criar “alguma coisa” ali, ela, que sempre gostou de criar, percebeu que esse era o caminho. Porque as duas lojas que ainda vendiam chita acabavam de fechar. Nos últimos 13 anos, criou aventais de folhos, laços bem engomados e bolsas de pano, à antiga, mas também almofadas, candeeiros, capas de livros e galinhas. “Fico feliz por ter conseguido dar à chita a nobreza e o toque que ela merece”, conta.

 

Como a família do Padeiro fez história

À hora de almoço, numa rua próxima do mosteiro, cheira a açorda de bacalhau. Lá dentro ouve-se Ana Moura pelas três salas que compõe o restaurante António Padeiro. O espaço encerra mais de 80 anos de história(s) e é outra Ana (esta de apelido Branco), neta do fundador, quem está agora ao leme desse barco, num mar de cozinha tradicional portuguesa. É ela que conta como a mãe, Maria Júlia, arregaçou as mangas e tomou conta da cozinha do restaurante, quando o pai morreu, subitamente, aos 45 anos.

As mãos de fada para cozinhar foram a sorte da família de António Padeiro, que fundara o restaurante na década de 30, depois de ali ter instalado uma padaria. Na verdade, António encontrou no fabrico do pão uma forma de ganhar dinheiro, coisa que não estava a conseguir como jogador profissional de futebol, no Sport Clube Leiria e Marrazes.

Sempre se comeu bem por ali, especialmente quando a nora tomou conta da cozinha. Mas o grande salto aconteceu quando a neta Ana Branco se dedicou de corpo e alma ao espaço. A mãe tem agora 81 anos e continua à boca do fogão, é dali que saem maravilhas da gastronomia, como a açorda de bacalhau, o frango na púcara, o cabrito assado no forno ou os (divinais) rissóis de robalo e camarão.

Há que reservar apetite para as sobremesas da casa, numa inevitável homenagem aos doces conventuais. Tudo isso num ambiente que recria uma casa da família: por toda a parte há fotografias, objetos pessoais dos avós, utensílios de cozinha de outros tempos. Em fevereiro deste ano, a família decidiu avançar para um novo desafio, a pizzeria FIORI Di ZUCCA, a poucos metros dali. “Faltava um espaço como aquele em Alcobaça”, considera Ana. E assim cresceu o negócio.

 

Sem regras, com critério

É comum encontrar no Centro Histórico de Alcobaça mais do que um negócio pertença da mesma família. Catarina Vieira, o irmão Ricardo e o marido, Nélson Ruivo, fazem já parte desse rol. Depois do Meat, uma hamburgueria que faz sucesso nas imediações do mosteiro, criaram em agosto a Taberna Sem Regras, onde os sabores portugueses e espanhóis se encontram à mesa. “Queríamos trazer aqui mais uma opção, alguma coisa que ainda não existisse”, conta Catarina, que sentia a falta de um espaço para petiscos, e para a especialidade das carnes maturadas, trabalhadas ali mesmo. É disso exemplo o “chuletón”, que vai ganhando adeptos por ali. Mas há outras coisas irresistíveis: o polvo à galega, o mexilhão à taberna, ou tão-só o jamón, esse presunto ibérico que tem uma verdadeira legião de fãs. De resto, todos os dias o chef prepara uma surpresa de entrada – “não ter regras permite isso mesmo, ir variando”.

A Taberna Sem Regras.

 

No alto do Cabeço

Chegar ao restaurante O Cabeço pode não ser muito fácil (não há placas indicativas), mas qualquer GPS faz a proeza de levar os mais distraídos por aquela estrada íngreme da aldeia Bemposta. Uma vez chegados ao alto, é aproveitar tudo: a vista, a horta biológica, as salas de jantar envidraçadas, a lareira acesa, a simpatia de Evelina Sobreira, e por último – mas nem por isso menos importante – a comida. Pedro Pereira cozinhava aos fins de semana para os amigos, quando foi apanhado pela crise. Era 2011, deixava para trás uma vida dedicada à carpintaria (e dela há vestígios no restaurante) e à construção civil, quando se aventurou n’O Cabeço com a mulher, Evelina.

O Cabeço. (Foto: Maria João Gala/Gl)

“Ao início não foi nada fácil”, conta ela, ao cabo de oito anos que mudaram a vida de ambos, mas sobretudo a história da restauração em Alcobaça. Vai longe o tempo em que a cozinha se fazia com uma fritadeira doméstica e um pequeno grelhador a carvão. Hoje tem tudo para conseguir os melhores pratos. Há uma mistura de polvo, lulas e choco panados com maionese de ervas que é obrigatória como entrada. E depois pode ficar nos filetes de peixe-galo com risoto de camarão, ou no melhor bife de atum braseado com escabeche de maracujá, juliana de legumes e esmagada de batata-doce. Para o final, o Cabeço guarda uma das imagens de marca de Alcobaça – a maçã, assada com creme brulé, gelado de baunilha e crumble de amêndoa. Não é conventual, mas é um manjar dos deuses.

 

O regresso das termas

No regresso a Alcobaça, há um recanto da natureza ideal para ficar. Chama-se desde 2007 Your Hotel & Spa, mas nasceu como Hotel das Termas da Piedade, e foi assim que fez história até final da década de 1990. Passaram 22 anos até que finalmente as termas voltaram à atividade, este ano. “Tem corrido muito bem”, confessa Hugo Gaspar, administrador do hotel e das termas – cuja utilização está aberta a qualquer interessado, não sendo condição estar instalado no hotel. Aliás, são vários os utilizadores que – sobretudo quando o hotel está lotado – procuram alojamentos na cidade ou nas aldeias à volta.

Your Hotel & Spa. (Foto: Maria João Gala /Gl)

Embora seja mais interessante conjugar as duas experiências, como se percebe em conversa com alguns entusiastas das termas – e simultaneamente do Spa. As águas termais têm indicações terapêuticas para o aparelho musculo-esquelético, digestivo, e também para valências dermatológicas. Há um corpo clínico que acompanha todos os tratamentos. Envolto numa mata de carvalhos e árvores diversas, o hotel oferece por isso um circuito pedestre, além de outros serviços como uma piscina exterior, salas de reuniões, e ainda o restaurante Sentidos, aberto ao público em geral. Ao todo são 62 quartos que compõem aquele edifício antigo, recuperado com todas as comodidades. Mais um conforto de Alcobaça.




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