Passeio por Montemor-o-Novo: chocolate, boas mesas e um hotel para aprender a dormir

Raízes medievais, músculos trabalhados pelo campo e a sabedoria de várias gerações definem, em parte, a essência dos montemorenses, tanto dos que aqui nasceram, como dos que assentaram arraiais. A meio caminho entre Lisboa e Évora sopram ventos favoráveis a quem procura fazer novo, com o Alentejo em pano de fundo: nos sabores, na paisagem e no estilo de vida positivo e saudável.

Do cimo da Torre da Má Hora, o olhar vislumbra a memória do que o CASTELO DE MONTEMOR-O-NOVO foi em tempos – o núcleo que protegia a vila alentejana com as muralhas erguidas no século XIII e ocupadas até ao século XVIII. Volvidos séculos de abandono e uma campanha de reconstrução nos anos 40, o castelo é hoje o mais importante monumento do concelho, graças ao estoicismo de alguns troços da muralha, respetivas torres defensivas e a várias obras de conservação.

“O Paço dos Alcaides era a estrutura mais importante. Começou por ter funções de defesa militar, mas a partir do reinado de D. Manuel foi usado como palácio”, conta o arqueólogo Carlos Carpetudo. A habitação do alcaide, onde os reis pernoitavam, foi testemunha de dois acontecimentos determinantes para a História de Portugal: quando D. Dinis decidiu fundar os Estudos Gerais em Portugal (origem da primeira universidade) e D. Manuel idealizou a realização da viagem marítima até à Índia.

(Fotografia de Paulo Spranger/GI)

Imaginar os edifícios e a vida entre muros, animada pelos artesãos, mercadores, viajantes e indivíduos de todas as classes torna-se um exercício mais apelativo no CENTRO INTERPRETATIVO DO CASTELO, dentro da Igreja de São Tiago. A nova exposição permanente, montada durante a pandemia, trouxe uma série de filmes 3D que recriam a vila e o castelo no século XVI (obra do projeto Morbase), em diálogo com cerâmicas e uma espada descobertos nos trabalhos arqueológicos no local.

A partir do século XIV, a população foi deixando as muralhas e ocupando a encosta norte – o chamado arrabalde onde hoje se encontra o centro histórico, com vestígios manuelinos, palácios setecentistas e um vasto património religioso. No website do município há um audioguia completo que interliga todos estes pontos de interesse, sugerindo uma caminhada capaz de abrir o apetite para o almoço. Se for esse o caso, há que ir ao RAIZ & TRADIÇÃO, sediado num edifício debruado a azul.

Aqui funcionou, durante décadas, o restaurante do Sr. Sampaio, proeminente figura que todos recordam com carinho. “Era uma casa muito tradicional, com loiças de barro e mantas alentejanas e nós transformá-la num espaço mais moderno”, conta a nova dona, Maria da Conceição, de 65 anos, enquanto o filho Francisco gere o muito concorrido Pátio dos Petiscos. O menu é levado à mesa numa ardósia e honra a tradição alentejana, com doses generosas servidas em loiças Costa Nova.

Entre as recentes adições há ovos mexidos com espargos, dispostos em cima de fatias de pão alentejano com tapenade de azeitona e rodelas de linguiça. Muito visual e boa para partilhar é a açorda de marisco servida dentro de um pão tostado no forno. Sopa de cação, abanicos de porco preto com migas de espargos, migas com carne de alguidar e sericaia com ameixa são outros dos clássicos presentes, e que se fazem acompanhar por uma completa garrafeira de produtores da região.

(Fotografia de Paulo Spranger/GI)

Porém, não só de vinho e pratos substanciais vive esta terra. A poucos metros, no eixo da Estrada Nacional 2 que atravessa a cidade, são de provar as cernelhas de Montemor, no CAFÉ PLANÍCIE. Esta queijada alentejana tem uma longa história, contada por Justina, com desarmante eloquência, do alto dos seus 91 anos. “O meu marido [Isaías Sampaio Rodrigues] é que as fazia no restaurante dele, e registou-as como cernelhas de forma a que ninguém pudesse vender o mesmo produto”, conta.

Originalmente, as queijadas eram feitas com queijo de ovelha fresco (que só existe entre janeiro e julho) mas, para que houvesse sempre produção, Sampaio resolveu substituir o queijo de ovelha por requeijão (subproduto do queijo), mais facilmente refrigerado durante o ano. Já o nome remete para uma forma de pegar o touro, de lado e pelo rabo, com dois forcados apenas. “Montemor era uma terra de corridas e ele era aficionado da tauromaquia”, continua Justina, que todos os dias visita o café.

Ana Carina Ramos, técnica de informática com 34 anos, reconhece “o peso” de dar continuidade ao negócio iniciado pela avó e onde entrou para ajudar os pais. É uma vida dura, que começa todos os dias de madrugada para alimentar os trabalhadores agrícolas, e que também passa pelo fabrico de empadas de galinha bem recheadas. A venda das queijadas continua a ir de vento em popa, ainda que já não sejam “aos milhares” como no tempo das excursões que ali chegavam do norte e de Espanha.

 

Cacau e cooperativismo

Nos caminhos-de-ferro de Montemor-o-Novo escreve-se por estes dias uma história igualmente doce, protagonizada pelos irmãos António e Serafim Melgão na estação ferroviária, desativada em 1989. Nesse ano, António instalou-se na cidade com uma pastelaria e desde então não mais largou a área, tendo começado por produzir os próprios bombons após visitar uma demonstração de chocolates. “Naquela altura, fazer chocolate no Alentejo era arriscado por ser uma região muito quente”, recorda.

Desafio superado, investigou, viajou, tirou cursos com chefs de cozinha e pastelaria e hoje produz chocolates de elevada qualidade a partir de cacaus “raros e finos de aroma”, comprados a cooperativas de pequenos produtores do Peru, Nicarágua e São Tomé. A magia acontece na fábrica MELGÃO – CACAU E CHOCOLATES, dentro da estação que recuperaram com a arquitetura original, e os produtos são vendidos tanto a profissionais como ao consumidor final, em forma de tabletes.

“Não tivemos receio de sermos portugueses nem de estarmos no Alentejo, porque acreditamos que podemos ser tão bons quanto os franceses e os belgas”, afiança António Melgão à “Evasões”. Para sensibilizar o público para aquilo que é de facto um bom chocolate e revelar a essência da alquimia inerente à produção, os irmãos criaram uma mini-fábrica no antigo armazém de carga, onde se pode ver o processo de fabrico de chocolate, da torrefação dos grãos à moldagem, e prová-lo no final.

Sem sair do Largo Machado dos Santos, encontra-se a COOPERATIVA INTEGRAL MINGA, que promove a economia e agricultura de proximidade e a regeneração dos ecossistemas. Os 70 cooperadores que operam na zona do concelho prestam e beneficiam de uma série de serviços, como engenharia informática e eletrotécnica, apicultura, agricultura e arquitetura, entre muitos outros. E “todas as pessoas podem fazer parte, desde que entrem com uma atividade nova”, explica Alexandre Castro.

A loja-mercearia “sempre foi um dos objetivos e funciona como porta de entrada”, continua o jovem presidente da direção da cooperativa, fundada em 2015. Nela vendem-se vinhos, cervejas e licores artesanais, doces, patês, leguminosas a granel, azeites, biscoitos, ervas aromáticas, mel, queijos e enchidos e pães locais; assim como artesanato local utilitário e decorativo, brinquedos, jogos, roupa interior de algodão orgânico e marcas de biocosméticos que sigam princípios sustentáveis.

(Fotografia de Paulo Spranger/GI)

Um hotel para aprender a dormir

A ideia de que o Alentejo proporciona um estilo de vida mais brando e em contacto com a natureza não é nova, mas tem ganhado força com uma abordagem que cruza o turismo de lazer e o bem-estar. A prová-lo surge o novo quatro estrelas SLEEP & NATURE, na freguesia de Lavre, um investimento da doutora e professora Teresa Paiva, que pratica e ensina a medicina do sono há mais de 30 anos e é diretora clínica e gerente do Centro de Electroencefalografia e Neurofisiologia Clínica.

Tendo em mente que “o sono é um dos cinco pilares da saúde” e que dormir menos horas do que as necessárias pode aumentar o risco de desenvolver doenças, o hotel desafia os hóspedes a “aprender a descansar” e a atenuar os seus problemas através de terapias não médicas. O descanso é feito em 32 quartos e em oito casas de madeira onde tudo foi pensado ao pormenor, desde a qualidade dos colchões ao menu de almofadas, passando pelo biscoito sem glúten e pelos chás calmantes.

O “hotel do sono” está também equipado com um gabinete médico e um spa para tratamentos à base de amenities da Âmbar (biocosméticos produzidos na vila alentejana de Cabrela). Dispõe igualmente de piscinas interior e exterior, ginásio e biblioteca com livros sobre o sono. No aconchegante restaurante Monte do Vagar há gaspacho, polvo à lagareiro, sopa de cação e lombinhos de porco preto, entre outros pratos à carta, e um bem abastecido pequeno-almoço servido até às 11h30.

Em matéria de restaurantes, O ARADO, na Ermida de Nossa Senhora da Visitação (nos arredores da cidade), é um bom nome a reter. E aqui quem come primeiro são mesmo os olhos, atraídos pelos janelões que emolduram uma vista panorâmica sobre a cidade e os arredores. “Quando telefonam a reservar, todos os clientes querem uma mesa à janela”, conta José Lopes, de 69 anos, vinte dos quais dedicados à venda de material fotográfico e outros tantos à restauração. Há uma década que é ele o “guardião” da ermida.

A mesa é inaugurada com paio fatiado, pataniscas e ovos mexidos com farinheira, e a partir daí segue-se uma lista de 25 pratos que nem por um centímetro se desviam do receituário tradicional. Mas também há bom marisco (não só dentro do aquário) e pratos especiais ao fim de semana como cabrito assado no forno, polvo à lagareiro e bochechas assadas no forno com puré de cogumelos. “Tem corrido muito bem, e ao fim de semana convém reservar”, aconselha, brindando com um licor de poejo.

 


Uma adega boutique no monte

Na adega Monte da Bica, em Lavre, João Oliveira não tem tido mãos a medir com tantas encomendas e solicitações. Filho da terra e formado em Artes Plásticas, cedo largou os museus e galerias para fazer primeiro o Bica Gin, depois os vinhos desta adega boutique, onde vindimar é “uma tarefa de loucos”. Dos seis hectares de castas tintas e cinco lagares de pisa a pé resultam “vinhos musculados” com a mão do “arrojado” enólogo André Herrera – o primeiro foi “As Netas Chegaram Primeiro” (castelão e syrah), feito com uvas de segunda floração, uma história de resiliência da vinha e da própria equipa. Para o mercado sairá agora uma nova leva de aguardente de figo-da-Índia, e há outras novidades vínicas e não só em marcha, que serão reveladas oportunamente.


Um roteiro em torno de Saramago

O romance de José Saramago “Levantado do Chão” fez 40 anos em 2020, desde a data da sua publicação, e dificilmente perderá valor e atualidade para as gentes da União de Freguesias de Cortiçadas de Lavre e Lavre, e não só. Afinal, foi durante a Reforma Agrária, em 1976, que o autor permaneceu no território, falando com os homens, mulheres e crianças que viviam e trabalhavam no campo para se inspirar na escrita de “Levantados do Chão” (publicado em 1980). A partir daqui nasceu o Roteiro Literário Levantado do Chão, que liga Lisboa, Montemor-o-Novo e Évora através de uma rede de percursos temáticos, abrangendo 26 pontos de interesse interpretativo e que permitem reconstituir e contextualizar os passos do autor.


Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

Texto originalmente publicado na edição de 30 de setembro de 2022 da Revista Evasões.



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