Roteiro pelos sabores e saberes de Almeirim

Da riqueza da recém-certificada sopa da pedra, às mãos dos padeiros que amassam as caralhotas, sem esquecer o melão local, as enguias que movem multidões e o legado vínico que soma séculos, a identidade gastronómica deste canto ribatejano alimenta-se de tradição, com receitas que passam de geração em geração.

O dia começa cedo para Hélia Costa, guardiã do saber e do legado deixado pelos pais e avós. Pelas 06h30, começa a preparar os ingredientes que tornam a sopa da pedra, recentemente certificada pela Comissão Europeia como Especialidade Tradicional Garantida, num ex-líbris da cozinha de Almeirim e numa das maiores bandeiras gastronómicas ribatejanas e nacionais. Na bancada da cozinha d’O TOUCINHO, restaurante que soma 60 anos, pioneiro da confeção desta rica sopa.

Cebola, alho, louro, feijão-catarino “para deixar a sopa mais aveludada”, chispe de porco, toucinho salgado, enchido local (farinheira, morcela e chouriço), colorau, pimenta, carnes salgadas, batata e coentros são obrigatórios neste prato de conforto, aqui comido de janeiro a janeiro, e não só nos dias mais frios, como alguns poderão deduzir. “No total, leva três horas a fazer, uma só a ferver a água, outra só a cozer o feijão. A batata é a última coisa a ir para a panela”, conta Hélia, que lidera o restaurante clássico de Almeirim com a ajuda do marido, João Simões, e dos filhos, somando já quatro gerações familiares. “Sempre gostei de cozinhar”, explica. Num dia composto, chegam a servir-se 300 litros de sopa da pedra.

A lenda associa a criação desta sopa a um frade, que, esfomeado e de visita a uma localidade, bate à porta de um casal de velhotes, prometendo conseguir fazer uma sopa com uma pedra que tinha. Já dentro de casa, foi pedindo os condimentos necessários, um a um, afirmando que a pedra serviria, afinal, para arranjar outra refeição na próxima casa que enganaria. Na verdade, os ingredientes que se usam na sopa eram os produtos que o povo cultivava e tinha em casa. “Como era uma sopa mais escura, por causa do feijão, ganhou este nome porque ficava parecida com as pedras escuras desta rua”, explica Hélia, que mantém a receita da avó.

Cebola, alho, louro, feijão-catarino, chispe de porco, toucinho salgado, enchido local, colorau, pimenta, carnes salgadas, batata e coentros são obrigatórios na sopa da pedra. (Fotografia de Rita Chantre/Global Imagens)

Hélia Costa e João Simões, proprietário d’O Toucinho. (Fotografia de Rita Chantre/Global Imagens)

Com casa cheia a qualquer dia útil ou de fim de semana – e espaço para acomodar 250 comensais – o segredo para manter o sucesso é só um. “Só se consegue com trabalho e qualidade. Só se engana o público uma vez”, explica a dona. As costeletas de borrego, os lombinhos de porco na vara e as bifanas dentro de caralhotas caseiras – já lá vamos – são outros destaques do restaurante.

Mestres do pão e do melão
O nome desperta curiosidade e deixa um sorriso pelos rostos de quem o diz e ouve. As caralhotas, as tradicionais bolinhas de pão de trigo feitas em forno a lenha, são outra das bandeiras firmes da identidade de Almeirim e batizaram-se com o termo que nesta localidade se usava para chamar aos pequenos borbotos da lã.

Do alto e da sabedoria dos seus 73 anos, Emília David é uma das padeiras que ainda mantém viva esta arte. No espaço CARALHOTAS DA CALDEIRA, vende este tradicional pão local, que está em processo de certificação. Começou a fazê-las a partir dos 20 anos, para sustentar a família e os seis filhos, e nunca mais parou. “Já estou com a caralhota na mão há cinquenta e tal anos”, diz, bem disposta e com visível vigor. “É um pão guloso, feito com amor. Ganha outro sabor, cozinha em forno a lenha e amassada à mão. Nunca me doem os braços, porque amasso muito pão”, conta Emília, nascida aqui.

Emília David produz caralhotas, doces e salgadas, à mão. (Fotografia de Rita Chantre/Global Imagens)

 

 

 

 

 

 

A massa-mãe é feita por si diariamente, e fica a levedar de véspera no frigorífico. Depois entra um pouco de sal, fermento e água morna. Só depois vai ao forno. Num dia de muito trabalho, chega a cozer 250 a 300 unidades, todas em processo artesanal. “Gosto muito do que faço. O pão para mim vale tudo. Não vou parar”, adianta, sem reservas.

No seu espaço, encontram-se as típicas caralhotas, mas também outras variações que surgiram com o passar das décadas, usando a mesma massa base das bolinhas tradicionais. Hoje, há pães com chouriço, farinheira, azeitonas, bacalhau, maçã, canela e nozes, além das broas de milho, de amêndoa ou de noz, entre outros. Tudo fruto do conhecimento que herdou da avó, que tinha 14 filhos. “Era nova, mas via como ela fazia o pão e ajudava. Quando se tem este bichinho, nada falha”, adianta a padeira.

A dedicação que implica o trabalho manual, seja a amassar pão ou a trabalhar a horta, é partilhado por ANTÓNIO RAMALHO, um dos últimos produtores do melão de Almeirim, também em processo de certificação. É na zona agrícola de Barreira Branca, nos arredores de Almeirim, que Ramalho cultiva este melão típico da zona, de casca verde e interior branco.

António Ramalho, um dos últimos produtores do melão de Almeirim. (Fotografia de Rita Chantre/Global Imagens)

O melão típico de Almeirim é de casca verde e interior branco. (Fotografia de Rita Chantre/Global Imagens)

O seu cultivo já chegou a ter quatro hectares só de melão. “Já cheguei a vender toneladas e toneladas de melão. Hoje a produção é menor”, conta o agricultor de 83 anos, natural desta região, com um pai caçador e uma mãe que lhe incutiu o gosto pelo produto, ou não fosse ela vendedora de legumes em mercados. Sobre o seu melão, que chega a pesar nove quilos, não tem dúvidas: “É muito saboroso. Ainda tem aquele gosto do melão de antigamente. Hoje as terras estão cheias de químicos. Toda a vida fiz bom produto”, conta.

Sobre o segredo em trabalhar a terra, e este fruto em especial, acrescenta: “Para ser bom, não pode levar muita água. Basta uma rega de duas horas, de oito em oito dias. E antes da apanha do melão, não o regar, perde o doce e abre com o calor”, adianta Ramalho. Para provar a qualidade do fruto, basta ir ao Mercado Municipal de Almeirim todos os sábados, onde a sua mulher, Maria do Céu, vende os melões numa banca.

Um santuário das enguias
Os comensais chegam de todos os pontos do país para provar as enguias. É assim há quase cinco décadas no CONSTANTINO DAS ENGUIAS, uma das moradas obrigatórias do concelho quando o assunto em cima da mesa se trata deste peixe. “Pode não ser consensual para alguns, mas a enguia chama muita multidão, recebo clientes do Algarve, do Porto, de Braga…”, explica José Valério, proprietário do restaurante situado em Foros de Benfica, a dez quilómetros do centro de Almeirim.

Um espaço que soma três gerações, num percurso iniciado pelo avô, Joaquim, que começou a vender sardinhas numa bicicleta e passou a pescar peixe de rio de forma livre depois do 25 de Abril. A confeção deste peixe – enguias incluídas, claro – chegou com a ajuda da filha, Virgolina, e do genro, Constantino, na altura numa “barraca” em madeira. O negócio foi crescendo em público e em espaço e estão hoje num restaurante que alberga até 120 pessoas, entre interior e esplanada. Ainda hoje, é a mãe de José, Virgolina, que assume as rédeas da cozinha, e ainda é o pai, Constantino, que escolhe, todas as manhãs, as enguias que serão preparadas, passando depois a amanhá-las.

Antes de chegar à mesa, o peixe é pescado pelas ribeiras em redor, no Tejo, mas também noutros pontos do país. Depois, mantêm-se frescas nos tanques do restaurante, sempre com água corrente. “O produto é sempre fresco. Fazemos tudo na hora”, conta José, que ajuda os pais há duas décadas num ambiente onde sempre cresceu. “Somos um concelho agrícola e a malta gosta de comer bem”, ri-se o dono, falando sobre a longevidade desta casa.

Constantino e Virgolina Valério, fundadores do restaurante, e José Valério, filho e gerente.
(Fotografia de Rita Chantre/Global Imagens)

A esplanada do restaurante. (Fotografia de Rita Chantre/Global Imagens)

A versatilidade da enguia, que aqui chega a somar uma tonelada de consumo durante um mês, prova-se de várias formas, sejam fritas e num ensopado, as mais pedidas no restaurante, mas também numa versão de caldeirada ou grelhadas, acompanhadas com batata frita, arroz e saladas. Com o tempo, a carta foi ampliando e oferecendo alternativas a quem não gosta deste peixe, como bifes de frango, febras, bacalhau grelhado, costeletas de borrego, picanha e sopa de peixe.

Tradição vínica bicentenária
Nasceu como coutada real, ligada aos prazeres da caça, mas foi ganhando camadas e valências com o tempo, sendo hoje um reconhecido nome na liga dos Vinhos do Tejo. Com três séculos de história, dois dos últimos assentes nas tradições agrícola e vitivinícola, a QUINTA DO CASAL BRANCO soma mais de mil hectares de terreno e 120 de vinha em solos de charneca.

Foi há mais de 200 anos que nasceu a adega e os primeiros vinhos da casa, na propriedade da família Braamcamp Sobral Lobo de Vasconcelos, somando gerações. Hoje, no portfólio vínico encontram-se mais de vinte referências de várias gamas – como Falcoaria, Quinta do Casal Branco, Monge ou Terra de Lobos, etc -, entre rosés, brancos, tintos, colheitas tardias e espumantes. As castas autóctones – como a Fernão Pires, a casta-rainha do Tejo – fazem parte do leque de vinhas, mas também outras que foram implementadas, na altura inovadoras na região, como a Merlot e a Cabernet Sauvignon.

A Quinta do Casal Branco soma mais de mil hectares de terreno e 120 de vinha em solos de charneca. (Fotografia de Rita Chantre/Global Imagens)

Hoje, no portfólio vínico encontram-se mais de vinte referências de várias gamas – como Falcoaria, Quinta do Casal Branco, Monge ou Terra de Lobos, etc -, entre rosés, brancos, tintos, colheitas tardias e espumantes. (Fotografia de Rita Chantre/Global Imagens)

Um legado que pode ser experienciado de várias formas. Nas atividades do enoturismo, há visitas pela propriedade, adega e jardins históricos, provas de vinhos – que podem decorrer no interior ou numa esplanada rodeada de plantas e árvores -, visitas à loja onde se vendem as referências da casa, almoços em plena vinha, concertos de música no jardim ou na sala de barricas, idas à coudelaria e passeios nos cavalos da quinta, de puro sangue lusitano.

As visitas à Quinta do Casal Branco, que também produz azeite, mostram a evolução no mundo agrícola e vitivinícola, onde se expõe antiga maquinaria a vapor, usada noutros tempos. Esta casa vínica, que teve o primeiro vinho certificado da Região Tejo, chega a passar o milhão de garrafas por ano e tem na exportação uma mais-valia, rondando os 90%. Para o futuro, estão já planeadas novidades ao nível do alojamento, prova de uma quinta que se reinventa, e não dorme à sombra dos seus séculos.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.



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