Mira: comer, dormir e passear entre o mar e uma lagoa

Podia ser só a praia, e era o encanto da arte xávega, do cheiro a maresia a impregnar tudo à volta. Mas é a Barrinha, a Lagoa, a arte gandaresa e as rotas diversas. É um hotel com vista e um mar de iguarias para saborear.

Enquanto houver sol – e mesmo que o vento baile com as vagas – Augusta Cruz há de permanecer ali, de costas para o mar, como só fazem os que o conhecem bem. Vende tremoços à maquia desde quando era menina e moça, sabe de cor as marés e as águas de São Bartolomeu, e pouco lhe importa se as manhãs são de nevoeiro cerrado ou de aberta claridade. Aos 75 anos, será provavelmente a figura mais conhecida da praia de Mira, esse pedaço da Costa de Prata que anda a reinventar-se. A contornar, aos poucos, a desordem urbanística que deixou marcas no turismo, e que a qualidade dos restaurantes, bares, tascas e alojamentos está a contrariar por todos os lados da terra.

«Hei de estar aqui enquanto puder. Tenho clientes da vida toda e todos os anos vêm novos», conta Ti Augusta, numa barraca de madeira que agora lhe guarda o frio ou o calor, conforme o tempo. Na manhã desta reportagem, os barcos não foram ao mar, que estava bravo, embora sem perder a beleza, a cor, nem o cheiro. Afinal, esta foi a primeira praia portuguesa a ganhar uma bandeira azul, e desde há três décadas que nunca mais perdeu o galardão. Tão azul como as riscas que decoram a Capela de Nossa Senhora da Conceição, santuário dos pescadores, cujo edifício faz lembrar os palheiros de Mira.

A Capela de Nossa Senhora da Conceição, santuário dos pescadores, está decorada às ricas azuis e brancas. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Noutro tempo, eram essas casas de madeira – assentes sobre estacaria – que dominavam a paisagem. Permitiam a livre circulação das águas durante as marés vivas, bem como a passagem da areia tocada pelos ventos, soprados do interior e do mar. O edifício do Turismo, por exemplo, replica bem esse ícone da arquitetura de Mira. E por toda a parte se lhes presta homenagem, nas paredes dos cafés e dos restaurantes.

 

Salgar a boca

Há um lado bairrista nos habitantes, salientado nos comerciantes. Aliás, está bem patente no SALGÁBOCA, cujo nome retrata um costume antigo dos pescadores: «salgar a boca. Quer dizer petiscar alguma coisa para acompanhar o copo», conta João Nuno Maranhão, que em 2013 desafiou o amigo Luís Patrão para abrirem um restaurante na terra que é de ambos. Queriam apostar num bom peixe grelhado, mas ir mais além e confecioná-lo de todas as formas. Por exemplo, o pitéu de raia – um prato conseguido muito à base de pimenta, a fazer lembrar o molho de leitão. É usual naquela franja de costa entre a Figueira da Foz e Aveiro.

Sardinhas, carapau frito e peixe frito são algumas das entradas do restaurante Sagáboca. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

A caldeirada e o ensopado também fazem parte dos hábitos na cozinha, o ano inteiro (e não apenas no verão). João e Luís tentam fazer ali aquilo que gostariam de ver replicado em toda a praia: «dar mais conforto ao turista e às famílias que continuam a procurar-nos ». Chegam sobretudo de Tondela, Viseu e Coimbra, muitas enchem o Salgáboca, que trabalha essencialmente com produtos locais. As entradas são uma perdição: ovas em salada, polvo ou peixe frito. E tudo obriga a um exercício de contenção para depois saborear os pratos principais. Também há pratos vegetarianos, para os apreciadores. E uma carta de vinhos da região da Bairrada que faz as delícias de quem lá vai.

De volta ao centro da vila, lá está a BARRINHA. Uma lagoa gigante agora dedicada aos passeios de gaivota, à espera de voltar a ser como dantes – a imensa piscina natural que servia de alternativa nos banhos, em dias de mar bravo. Para isso, é preciso um grande trabalho de limpeza, que demora a chegar. Nada lhe retira a beleza, porém. É ali que encontramos João Falcão, um antigo pescador que, uma vez reformado, encontrou no artesanato em madeira uma forma de ocupar os dias. Faz barcos, réplicas dos originais, além de casas gandaresas e palheiros.

No Sítio do Cartaxo, um ecoturismo, pode-se alugar barcos, bicicletas e fazer passeios pela lagoa. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

 

Da Gândara até ao mar

Para lá da praia, Mira é também o coração do território da Gândara, terra de planura entre pinhais e campos de cultivo. Uma espécie de transição do litoral para o interior, que se estende entre os campos de Coimbra e a ria de Aveiro. Por ali nasceram casas típicas, fáceis de identificar aos olhos do visitante: rés do chão, duas janelas e uma porta ao meio, um portão ao lado por onde entravam os animais e as colheitas. Toda a história dessa região está à distância de uma visita ao MUSEU DO TERRITÓRIO DA GÂNDARA. «Mais do que peças, o nosso objeto museológico são as pessoas», pode ler-se à entrada, antes de embarcar nessa viagem pelo tempo, guiada sobretudo pela via digital.

João Pinho, nascido e criado perto da lagoa de Mira, quis homenagear essa autenticidade quando recuperou para o turismo rural a antiga casa dos avós, onde ele próprio viveu. Trabalhava na embaixada de Portugal na Holanda, dedicava-se a «vender o país» sobretudo aos países nórdicos, quando se apercebeu do que eles procuravam: «o genuíno, o autêntico. Percebi que não eram tanto os hotéis que lhes interessavam, mas antes esse lado das terras». Ao mesmo tempo, estava numa encruzilhada: ou a casa dos avós ia abaixo, ou lhe dava uma segunda vida. Optou por isso. De modo que em 2015 abriu as portas da CASA DA LAGOA, depois de adaptar velhos currais, transformando arrecadações e celeiros, guardando porém o essencial daquela casa gandaresa. «No fundo, o que fizemos foi dar-lhe conforto», conta João Pinho. De resto, a família continua a cultivar nos terrenos anexos as abóboras ou os morangos com que faz as compotas que serve aos hóspedes; é daquelas galinhas que ali moram em liberdade que vêm todos os ovos da casa. Porque é possível fazer ali as refeições, a pedido. Depois, é só saborear a casa de campo, o jardim com árvores de fruto, a paisagem bucólica.

O êxito da Casa da Lagoa – cuja ocupação, ao longo de todo o ano, é maioritariamente de origem alemã, seguida de Espanha e Portugal – levou o proprietário a investir numa segunda unidade de turismo rural. O projeto está aprovado e dentro de pouco tempo avançará para a construção da Casa da Forja, outra casa gandaresa que pertenceu aos bisavós. Lá para 2021, deverá abrir portas.

 

À beira da Lagoa

Pode chegar-se de carro, a pé ou num belo passeio de bicicleta. Uma vez sentados na esplanada do SÍTIO DO CARTAXO, há uma paisagem de cortar a respiração: a lagoa de Mira, um barco atracado, a fauna e a flora tão específicas. É ali a sede da Associação dos Amigos dos Moinhos e Ambiente da Região da Gândara. O presidente, Hélder Patrão, é um militante da preservação ambiental há muitos anos, especialmente daquela faixa «de mudança climática» entre Aveiro e Figueira da Foz, que é Mira. Esteve na origem da aposta no ecoturismo do Sítio, onde afinal não há só cartaxos, mas mais de uma centena de aves que os amantes da observação conhecem bem. Ali é possível alugar bicicletas ou barcos, e passear pela Lagoa e toda a zona envolvente. Em novembro (este ano a 23), há ainda a Festa dos Cogumelos, que faz as delícias dos apreciadores.

Um pequeno cais com embarcações no Sítio do Cartaxo. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

É sempre com olhos postos na água (doce ou salgada) que se constroem as melhores memórias em Mira. É o que acontece no NAUTIC BAR, junto ao clube náutico. Parece uma floresta encantada, aquele jardim envolvente, abrindo portas para um espaço verdadeiramente alternativo: sumos naturais, cerveja artesanal, pratos vegetarianos e saladas coloridas. Rui e Cristiana têm outros condimentos para acrescentar a este cardápio, como a boa conversa para quem chega. Conheceram-se ali, numas férias de verão, e começaram um projeto de vida que vai percorrendo um caminho sempre com um pé na areia. Chamava-se assim o primeiro espaço que criaram, na praia. Depois acabaram por mudar-se para o bar que o clube náutico concessiona, e assim fizeram aquele espaço ímpar. Lá dentro, é como se estivéssemos na sala de estar dos avós, com todo o mobiliário vintage. Na esplanada (adaptada também para o inverno), os espanta-espíritos preparam as mesas para o que aí vem: hambúrguer de seitan, cogumelos salteados com queijo vegan, ou qualquer salada. Às vezes há música ao vivo, outras apenas a banda sonora sempre bem escolhida.

 

Tinto e jeropiga, com peixe frito

No regresso à praia, há outro espaço que é fundamental conhecer: a TASCA DO RICARDINHO. Há quem percorra largos km para saborear a sopa de peixe, mas há outras iguarias para provar, como as lulas ou o choco frito, o polvo em vinagreta, as ovas de bacalhau, ou os percebes. O espaço existe desde maio de 2017, pela mão de Ricardo Colaço e da mulher, Samanta, que toma conta da cozinha. «Inspirei-me na minha vivência toda, em tudo aquilo que os mais antigos comiam – e bebiam – na região gandaresa», conta Ricardo, enquanto afaga um pequeno cão, que acabara de entrar com um cliente. Na verdade, em Mira cresce o número de bares/restaurantes «amigos dos animais», e a Tasca (tal como o Nautic) é disso exemplo.

A poucos metros daqui, outra curiosidade. Numa terra de mar e pesca, há uma pizaria que faz sucesso desde há muitos anos: a MILANA. Teresa Tomás é a matriarca deste negócio de família com raízes em Anadia, que um dia descobriu aquele espaço na praia e resolveu apostar nas pizas. Faz sucesso a Portuguesa (uma explosão de sabores com tomate, queijo, chouriço, bacon e azeitonas, pimento e cebola), mas há outras especialidades da casa: bruschettas, pão de alho com queijo, e até bacalhau. Estranho? Nem tanto. «Foi uma forma de agarrarmos outra clientela. Há uns anos, os pais vinham deixar os filhos para comer piza e depois iam jantar a outro lado. Experimentámos incluir na ementa um prato de bacalhau à casa, e foi um sucesso».

O Nautic Bar tem sumos naturais, cerveja artesanal, pratos vegetarianos. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Quando cai a noite, a praia de Mira mergulha num silêncio saboroso. E há um lugar incontornável que soma quase tantos anos como a bandeira azul: Chama-se 60’S e é o bar irlandês mais antigo do país, pelas contas de Maria e Vítor Milheiro, que lhe dão vida há 30 anos. Ele foi um dia de férias à Irlanda e apaixonou–se por aquele conceito de pub, ela foi de férias a Mira e apaixonou-se por ele. Tem a particularidade de estar aberto «todos os dias do ano, exceto no dia de Natal».

«Somos muito fiéis ao conceito irlandês. Não é só o nome», sublinha Maria, que sabe de cor o que procura cada cliente, muitas vezes também amigo. Abre as portas e o coração a quem chega, nos intervalos das horas que passa na cozinha, entre francesinhas e hambúrgueres (também vegetarianos), e outros pratos. Depois há sempre uma Guiness para saborear, ou um Irish Coffee para aquecer a alma, em noites frescas de verão, ou frias de inverno.

 

Piscina aquecida e vista para o mar

João Maçarico carrega no nome a herança de vidas passadas. E de outros projetos. Quando há seis anos decidiu avançar para a construção do MAÇARICO BEACH HOTEL, virou a página da pensão/residencial que herdara dos pais, numa família ligada à praia de Mira e à arte xávega. Nasceu assim um complexo de 30 quartos (incluindo duas suites, dois quartos com banheira de hidromassagem e nove com vista para o mar). Logo à entrada, é a vila piscatória que envolve quem chega, num misto de âncoras, redes e bússolas, tudo envolto numa decoração sofisticada, mas a fazer lembrar os trajes dos pescadores e outros ícones marítimos. O segredo mais bem guardado deste hotel quatro estrelas é o último piso, onde a piscina aquecida permite uma vista panorâmica sobre toda a praia de Mira. Mas não é tudo. Há ainda uma sala de massagens para completar este leque de oferta de bem-estar. E todo o mar à frente, até perder de vista.

O Maçarico Beach Hotel fica na Praia de Mira. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

 

Roteiro originalmente publicado na edição de 11 de outubro de 2019 da revista Evasões.



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