Matosinhos: A lenda da vieira, o mar e o peixe fresco no Caminho de Santiago

Pelo interior do concelho ou pela marginal, ao sabor da maresia - há até quem vá pela praia -, o caminho é feito de lendas, histórias, património e peixe na brasa.

Não faz parte do percurso oficial, que passa pelo interior da cidade, mas atraídos pelo mar, são muitos os peregrinos que seguem pela marginal de Matosinhos, com a maresia e a rebentação das ondas a embalar a marcha. Há um grupo a caminhar no areal, logo pela manhã. Nilda e Martina (mãe e filha da Croácia, a viver na Alemanha), conheceram Yvone e Julia (mãe e filha alemãs) na praia, minutos antes, e vêm a conversar. É a primeira vez que todas fazem o caminho, motivadas pela aventura.

Praia de Matosinhos (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

A proximidade do mar será a principal razão que puxa os caminhantes para o litoral, mas a praia de Matosinhos tem ainda um significado acrescido, associado a um dos maiores símbolos da tradição jacobeia, a concha de vieira. Uma lenda do tempo da ocupação romana diz que naquela praia se terá realizado o casamento de Cayo Carpo, e que o nobre cavaleiro terá cavalgado mar adentro sobre as águas, até uma embarcação em pedra que levava o corpo do apóstolo Santiago em direção à Galiza. No regresso a terra, surge do mar, juntamente com o seu cavalo, coberto de vieiras (ou matizado), passando a ser conhecido como o Matizadinho, nome que deu origem ao topónimo de Matosinhos.

Praia de Matosinhos (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

Dali, o percurso natural é envolvido pelo cheiro a peixe grelhado, deitado nos assadores que se alinham nas ruas à porta dos restaurantes, e segue em direção à praia de Leça da Palmeira. Antes, impõe-se uma passagem pelo Mercado de Matosinhos, para absorver as cores, os sons e os aromas que preenchem aquele luminoso edifício modernista, inaugurado em 1952, passear pelas bancas de peixe, frutas e legumes, e conhecer as lojas e restaurantes. Um deles é o MERCADO FOOD & DRINKS, que tem até um menu especial de peregrino (sopa de peixe, arroz de feijão com petinga ou pataniscas e água, por 10 euros), e onde os caminhantes podem carimbar a sua credencial.

 

O espaço começou por funcionar como wine bar. “Foi uma brincadeira”, conta Pedro Brito, o proprietário, mas ficou sério, a ponto do empresário regressar de Angola e converter o bar em restaurante em 2018. A sopa de peixe – a que os mais corajosos podem juntar umas gotas de jindungo -, abre normalmente a refeição, que por regra segue com peixe ali do mercado. “O cliente chega e vai escolher o peixe diretamente às bancas”, explica Pedro. Depois de preparado, é simplesmente levado à grelha. Pode acompanhar com arroz caldoso de coentros, ou de tomate, por exemplo. Estes são os mais escolhidos pelos peregrinos que optam por parar aqui para almoçar. “Costumam passar por aqui entre as 9h e as 11h. Dão uma volta pelo mercado, abastecem-se de fruta. Alguns acabam por almoçar e ficam aqui a contar histórias, e até mudam os planos e ficam a dormir novamente em Matosinhos, aqueles que não vêm com os dias contados”, desfia Pedro.

Para lá da ponte, a praia de Leça da Palmeira acompanha o peregrino para a norte. À frente há-de encontrar passadiços sobre o areal que tornam aprazível o percurso até Vila do Conde.

 

Hospitalários da Via Veteris
Historicamente, os romeiros a caminho de Compostela, atravessariam o concelho pelo interior, seguindo pela antiga Via Veteris, que começava junto ao rio Douro, no lugar da Arrábida, vindo pelo Padrão da Légua e passando pelo Largo do Souto – onde não faltam referências ao apóstolo -, em SANTIAGO DE CUSTÓIAS. O percurso passa ainda pela PONTE MEDIEVAL DE GOIMIL, inserida num cenário rural. Daí, a estrada seguia por Pedras Rubras até Vila do Conde.

 

A ponte está no território do antigo Couto de Leça da Ordem dos Cavaleiros Hospitalários, sediada desde a Idade Média no MOSTEIRO DE LEÇA DO BALIO. Este monumento nacional, com origem no século X, desempenhou um importante papel no acolhimento e assistência aos peregrinos de Santiago – há registos da passagem de personalidades régias, como D. Afonso II, a caminho de Compostela, e até de um peregrino anónimo, inscrito num livro de óbitos do século XVII. Um pequeno desvio leva a admirar o imponente edifício gótico, onde estão a decorrer obras de reabilitação. Enquanto não terminam, é possível conhecer o interior e a história do mosteiro através de uma visita virtual, narrada pelo historiador Joel Cleto, na plataforma online Monasterium – No Caminho de Santiago.

Mosteiro de Leça do Balio (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

Foi com o espírito hospitalário do caminho que Abel Ribeiro tomou a iniciativa de criar o REFÚGIO DE PEREGRINOS VIA PORTUSCALE em 2012. Fez pela primeira vez a peregrinação em 2004, e em 2008 voltou à estrada e lá diz ter encontrado o propósito de “servir o caminho”. É um projeto feito por voluntários, com 20 camas, uma cozinha partilhada e um agradável jardim, onde já chegou a ficar um burro, que trouxe um peregrino vindo da Bélgica. “Somos um hospital”, realça Abel, numa pausa da construção da nova lavandaria, que lhe vai ocupando a tarde. “Vai-se fazendo, um tijolo de cada vez, tal como o caminho é feito uma etapa de cada vez”, observa. Outra unidade de portas abertas aos peregrinos é o OPORTOOCEAN, um hostel com camaratas e suítes privadas, inspirado no mar.

 

Katie e Angie | EUA
De chapéu de cortiça a condizer, que compraram no dia anterior, em passeio pela cidade do Porto – e já lhes valeu a alcunha de “cork heads” (cabeças de cortiça) entre o grupo de viagem -, as amigas Katie e Angie, da Califórnia e do Indiana, respetivamente, caminham divertidas pela marginal da praia de Matosinhos, mesmo com as nuvens a ameaçar descargas ocasionais. “Temos amigos que já fizeram o caminho muitas vezes e falam do quão maravilhoso e especial é, e nós queríamos ter essa experiência”, relata Katie. “E gostamos de aventuras”, diz Angie. Fazem parte de um grupo de nove pessoas de diversas nacionalidades, reunidas por Garry. “É o nosso líder”, brincam as duas americanas. Garry juntou amigos principiantes e outros que conheceu nas suas várias idas a Compostela, para regressar ao caminho, numa espécie de reencontro. Vão pela costa, movidos pela “beleza natural”, mas já encantados, ainda no primeiro dia de peregrinação. “We love Portugal”, lançam.

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