Galiza ao sabor do vento, pelo caminho marítimo de Santiago

O Caminho de Santiago também se cumpre por mar, em veleiros. O percurso pela costa atlântica foi reativado este verão e a “Evasões” fez-se ao mar. Uma rota pelas Rías Baixas que deve ser feita com calma e tempo - até porque há muito para visitar em terra.

É com as velas ao vento que se cumpre o caminho marítimo até Santiago de Compostela. Percurso antigo que é agora recuperado, baseado no mito do apóstolo que, depois de morto, no ano 44, foi levado pelos seus discípulos Teodoro e Atanásio, numa barca de pedra de Jaffa, Palestina, até Compostela. Conta a lenda que a viagem deu-se pelo mar Mediterrâneo, subindo a costa Atlântica da Península Ibérica até Padrón. Depois, terá sido enterrado perto de Compostela.

Se a lenda foi o mote para Compostela se ter tornado local de peregrinação, é, assim, também o mote para a recuperação deste caminho náutico. O mar sempre foi utilizado como via até lá, até porque, explica Rúben Araúxo, guia que acompanhou um dos barcos da travessia que em junho passado reinaugurou a viagem, “os peregrinos oriundos, por exemplo, das Ilhas Britânicas e dos Países Nórdicos tinham de vir por mar”. Além disso, muitas pessoas, após cumprirem a peregrinação, voltavam para as respetivas terras de barco.

Mas como só os mitos fazem barcas de pedra navegar, hoje o caminho náutico é feito por veleiros. E é mesmo obrigatório ser um barco à vela para contar como peregrinação e o peregrino conseguir o certificado no final da travessia. Quando o vento não está de feição, o que com frequência acontece ao longo da costa portuguesa e da Galiza, pode, não obstante, ligar-se o motor.

Por isso, para os navegadores mais experientes que se fazem à rota, esta viagem junto à costa não passa de “um passeio”, como diz Pepe Ferrer. Quando a EVASÕES embarcou, já no porto de Vigo, Pepe e os seus companheiros andavam no mar há vários dias, vindos de Sevilha, Andaluzia, no veleiro Odysseias. “Nós vamos a muitas regatas”, conta. “Já navego há muito tempo. O meu sogro era comandante de um iate e eu sou engenheiro e trabalhei num estaleiro. Por isso, sempre tive muita relação com o mar”, conta. O seu primeiro barco foi a motor, e há 20 anos comprou um veleiro. Já participou em numerosas regatas, já cruzou o Pacífico, chegando até ao Japão, regatas em que só se pode navegar à vela, “não é como aqui”, sublinha.

Mas com ou sem motor, esta rota pelas Rías Baixas, deve ser feita com calma e tempo. Até porque há muito para visitar em terra.

Uma vila histórica e uma ilha protegida
Saindo da Ría de Vigo para norte, passando o cabo Home, com as famosas Ilha Cíes a ocidente, entra-se na Ría de Pontevedra, onde fica o clube náutico de Portonovo, muito bem preparado para receber os navegadores. Deixando o barco e descansar, faça-se por terra alguns quilómetros para visitar Combarro, uma pequena povoação onde se encontra o maior conjunto de espigueiros da Galiza, que remontam ao século XVIII, que por ali se chamam “hórreos” ou “cabazos”. Bem conservados, este tipo de celeiros, que só existe na Galiza e Norte de Portugal, além de serem atração turística, mostram uma Galiza tanto ligada ao mar como à agricultura. Aos celeiros, juntam-se as antigas casas de pescadores e os cruzeiros. No centro da pequena povoação, não faltam cafés, bares e lojas com lembranças turísticas.

Combarro, na Galiza.

E não se saia da província de Pontevedra sem se passar pelo menos um par de horas na Ilha de Ons – um dos quatro arquipélagos que compõem o Parque Nacional Marítimo Terrestre das Ilhas Atlânticas da Galiza (juntamente com as Cíes, Sálvora e Cortegada).

Há barcos a partir com regularidade de Portonovo e Sanxenxo até Ons. Em O Curro, a capital da ilha e a aldeia mais povoada da mesma, há restaurantes de comida local, tudo à base de produtos do mar. Explorando um pouco a aldeia, encontra-se a igreja de San Xaquín, erigida nos anos 60, em tons azuis e brancos, decorada com azulejos de temas marítimos e religiosos. Na ilha há vários trilhos pedestres e também um parque de campismo para quem quiser pernoitar. Como faz parte de um parque protegido, é necessária autorização para entrar na ilha, havendo um limite diário de pessoas. Isto para que não se crie muita pressão à flora e à fauna protegida, como as gaivotas-de-patas-amarelas, gaivota de asa escura ou os corvos-marinhos.

A história de um Grand Hotel e de um balneário termal
Continuando a viagem para norte, entra-se na penúltima parte do percurso, na Ría de Arousa, onde se encontra uma das ilhas com mais história da Galiza, a Ilha da Toxa, concelho do Grove. Tem pouco mais de 1 quilómetro quadrado, mas nele cabem muitas histórias. Aqui se ergueu o primeiro cinco estrelas de Espanha, o Gran Hotel da Toxa que passou por diversas fases, como explica, Francisco Meis, guia da ilha, orgulhoso ogrovense, que sabe todos os pormenores que a ilha.

“Este foi o primeiro resort de Espanha e um dos primeiros da Europa”, conta. Apesar do turismo nos princípios do século XX ser residual, aqui se inaugurou o Gran Hotel, em 1908. A par do hotel, criou-se um campo de golfe, principalmente a pensar nos turistas britânicos. Daquela época ainda se conservam ruínas da casa do clube de golfe, que no Grove os habitantes continuam a chamar de “casa dos ingleses”. A necessidade de se criar o hotel surgiu devido às águas termais, que eram já exploradas num balneário mais antigo.

Capela das Conchas (San Caralampio), na Ilha da Toxa.

Quem hoje se passeia pela ilha, pode não imaginar que no início do século XX, tudo era diferente. Os jardins que ligam o hotel à Capela de San Caralampio, famosa por estar revestida de conchas de vieira, não existiam, porque “era uma lagoa de água do mar, que funcionava como salina”. Só mais tarde aquele espaço foi preenchido com terra e coberto de árvores. A ilha começa a mudar quando se faz o projeto para o primeiro balneário. “A origem deste é de 1841, quando se funda a primeira sociedade que vai explorar as águas termais. Nessa altura não existia absolutamente nada. A ilha era um deserto, com zonas muito quentes onde se cavava para se ter acesso às águas do manancial”, conta Francisco.

Começaram, então, a erguer-se os primeiros barracões. Mais do que um balneário, parecia um acampamento. Em 1879, a propriedade divide-se e entra em jogo uma pessoa essencial para a história do balneário, Luis Mestre Roig, que será o administrador. Mas as coisas não correm de feição e o Estado decide intervir, até porque as condições dos balneários não eram boas. Acontece que em 1899 há um incêncido vai destruir os balneários e servir como ponto de viragem da sua história. E aqui entra o Marquês de Riestra, que acaba por ficar com as propriedades. Em 1903 é fundada a Sociedade Anónima de A Toxa, da qual o presidente será Riestra. “A partir daí tudo muda. Passa-se de um balneário de traços familiares a um modelo empresarial. Começa-se a fazer publicidade do manancial e decide-se construir o Gran Hotel”.

O hotel de hoje já pouco tem a ver, exteriormente, com o original, obra do arquiteto Daniel Vázquez-Gulías. O primeiro constava de duas edificações, o salão-restaurante e o hotel em si. “O salão principal estava repleto de frescos nas paredes, murais do pintor Ramón Pulido Fernández e abaixo havia outros salões com obras do pintor leonês Demetrio Monteseirín”. Os frescos foram todos retirados na reforma de 1945. “A arquitetura mudou completamente. Passamos de uma estética modernista para uma arquitetura racionalista. A arquitetura é representativa de uma época, não é nem mais bonita nem mais feia”, considera.

Gran Hotel de A Toxa.

Não obstante, a estrutura original vai permanecer e a parte mais antiga do hotel é mesmo a dos primeiros pisos, sendo a “joia da coroa” a escadaria construída em ferro forjado, em estilo de arte nova.

As motivações para a reforma foram muito práticas. É que depois do crash da bolsa de Wall Street de 1929, a família Riestra fica sem nada e as suas propriedades foram para os bancos. “Os banqueiros são gente prática”, lembra Francisco. Por isso se decide aumentar o hotel de 73 para cerca de 200. Para isso, teve de se aumentar pisos. Mas já não era possível reproduzir aquele antigo modelo arquitetónico, porque na época estava obsoleto. De forma pragmática, adota-se a arquitetura do momento, o racionalismo, com linhas singelas, retas, obra do arquiteto leonês Francisco Javier Sanz, e que é o que hoje se pode apreciar.

Padrón e a tradição jacobea
Para se cumprir oficialmente o Caminho por mar, com direito a certificado de peregrino, tem de se navegar pelo menos 90 milhas náuticas à vela e caminhar no mínimo sete quilómetros. O que não é difícil. Uma das passagens praticamente obrigatória é a histórica cidade de Padrón, ponto fulcral da tradição jacobea.

Isto porque Santiago também passou por aqui. Aliás, a razão pela qual os seus discípulos quiseram transladar o corpo do apóstolo para a Galiza terá sido, diz a lenda, por ter ido pregar precisamente para a Hispânia. Padrón era naquela época conhecida como Iria Flavia, sendo um importante centro urbano romano, por causa do cruzamento dos rios Sar e Ulla e do fácil acesso ao mar.

Conta a lenda que Santiago terá andado por ali logo a seguir à morte de Jesus, no ano 34. Depois de não ter tido muito sucesso a converter a população da Ibéria, regressou à Terra Santa. Depois, quando os restos mortais voltaram na barca de pedra, entraram por ali, tendo sido depois o seu corpo transladado num carro de bois para ser depositado no monte Libredón, junto a Compostela.

Conta ainda a história que a barca que transportou o corpo do apóstolo foi presa a uma ara pagã dedicada a Neptuno, o que acabou por dar o nome atual ao concelho. Esta pode ser visitada na igreja paroquial de Santiago de Padrón.
Em Padrón se inicia assim a rota até ao sepulcro para os peregrinos que chegam pelo mar. Depois, é só um pulinho de 25 quilómetros até se chegar à Catedral de Santiago de Compostela, onde descansam os restos do apóstolo.

# Informações úteis
Portos da Galiza – Rota do Caminho do Mar

No site dos Portos da Galiza (portosdegalicia.gal) encontram-se todas as informações importantes para se realizar o Caminho de Santiago por mar.

Algumas dicas:
1. Estudar a rota marítima desejada. Pode-se navegar para qualquer porto da Galiza. Em cada escala, tem-se direito a um selo no passaporte de peregrino.
2. Contactar o porto de destino para tratar das reservas.
3. Começar a rota, recebendo o primeiro selo.
4. Chegada ao porto de destino. Deve navegar-se, pelo menos, 90 milhas à vela.
5. Iniciar a peregrinação a pé. Deve caminhar-se, no mínimo, 7 quilómetros e pedir selos nos pontos de paragem, como albergues, hotéis e restaurantes.
6. Chegada a Santiago de Compostela. Apresentar o passaporte com os selos necessários na Oficina do Peregrino, onde será entregue a credencial de Peregrino.

 

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