Da planície à serra, o outro lado de Sousel, a ‘capital do borrego’

No concelho alentejano que se afirma “Capital do Borrego”, a carne tenra e saborosa é estrela em quase todas as mesas. Mas entre os repastos há muito por descobrir, dos vinhos que os acompanham, à serra que ajuda na digestão, passando pelo património religioso e pelos projetos que alimentam o espírito.

Quem entra neste monte caiado de branco e rodeado de sobreiros e azinheiras da HERDADE DO MOUCHÃO, em Casa Branca, talvez não imagine que esta herdade soma já perto de 200 anos. “Quem começou o que aqui temos foi o britânico Thomas Reynolds, que em 1805 já tinha estado em Portugal como militar durante as invasões napoleónicas”, explica o responsável de comunicação Pedro Fonseca.

“No início do século ele fixou-se com a família no Porto, a exportar vinho para Inglaterra, e depois expandiu o negócio para o comércio de cortiça, azeite, mel e lã, arrendando mais de 100 herdades alentejanas. A meio do século, dominava o império da cortiça”, prossegue Pedro. A aposta no vinho chegou mais tarde, com a plantação das primeiras vinhas da casta Alicante Bouschet em todo o Alentejo.

Muito aconteceu desde então, tendo sido necessário recuperar a produtividade da herdade após o período revolucionário. Hoje, na sexta geração, a adega de 1901 mantém-se como peça central, onde a vindima é feita à mão, depois pisada em grupo numa dezena de lagares e prensada manualmente. “É a adega mais antiga em atividade no Alentejo”, diz Pedro, e guarda tonéis de madeiras exóticas, alguns centenários.

“Tudo leva o seu tempo nesta casa”, complementa o enólogo Hamilton Reis, numa mesa de provas rodeada de tonéis. O resultado são vinhos de baixa intervenção, “mais rústicos e genuínos”, divididos em três gamas: D. Rafael, Ponte e Mouchão (a gama alta e a “mais importante, pois traduz a identidade da herdade e expressa o terroir”). Já os vinhos de topo, rotulados como Tonel, são de raras produções.

Respondendo à apetência do público pelo enoturismo, a Herdade do Mouchão criou um conjunto de visitas à adega e à vinha seguidas de provas, as quais têm lugar na antiga cozinha do monte. Neste espaço é também possível comprar o vinho, azeite e mel biológico ali produzidos. A visita pode ainda ser complementada com um almoço de borrego (também criado ali) com vinhos do Mouchão, na destilaria.

A cinco minutos de carro, no centro da freguesia, Fátima e António Mira comprovam a tradicional hospitalidade alentejana. Juntos há 51 anos – ela ex-dirigente na função-pública, ele ex diretor-geral na área dos seguros -, resolveram preservar a casa senhorial do século XIX que lhes coube em herança e abrir a CASA BRAZÃO DE MIRA, com cinco quartos, sala de estar e de refeições, biblioteca e piscina.

Comunicativos e atentos às necessidades dos hóspedes, são os próprios que costumam pôr a mesa do pequeno-almoço, fazer os ovos mexidos e espremer os limões apanhados diretamente da árvore. E enquanto António desfia as memórias de quando era criança e ia “caçar pardais atrás de uma palmeira” no jardim, os visitantes criam outras, igualmente felizes, de como é bom sentir o puro Alentejo.

Foi justamente essa demanda por uma melhor qualidade de vida que motivou Maria João Lima, Gito Lima, o escritor Afonso Cruz e Lúcia Vicente a “fugir da cidade para o campo”. Apaixonados por Sousel, investiram na missão coletiva de “descentralizar o acesso à cultura” dentro do próprio concelho, terra onde vivem pouco menos de cinco mil pessoas e de facto “não existia nenhuma livraria”, até ao verão passado.

(Fotografia de Rita Chantre/GI)

Assim nasceu a ASSOCIAÇÃO ERA UMA VOZ, sem fins lucrativos, na sede do Grupo Musical Artístico e Desportivo de Casa Branca, entretanto recuperada com fundos próprios e o apoio da autarquia. O projeto inclui a biblioteca pública Afonso Cruz, com cerca de três mil livros, CDs e DVDs doados, uma livraria, um clube de leitura presencial e online, um grupo de teatro e um espaço de exposições mensais.

“A arte e a cultura são um motor fundamental para o desenvolvimento de cada um e da sociedade como um todo”, defendem. Por isso, não lhes faltam ideias para dinamizar a agenda da Era Uma Voz: ciclos de jantares literários, espetáculos, oficinas e até projeções de cinema no pátio, durante as noites quentes de verão. O antigo bar é agora uma montra de cervejas, biscoitos e outros produtos artesanais.

 

Um baloiço no topo da serra

A caminho da vila de Sousel passa-se pela freguesia do Cano, anunciada por um proeminente depósito de água. Não sem razão, o nome derivou da palavra árabe “qanãt”, que significa “túnel subterrâneo para irrigação”. Se for verdade que beber água abre o apetite, à hora de almoço vale a pena parar no restaurante PLANÍCIE, onde a canense Margarida Guerra Araújo já tem o ensopado de borrego a fumegar.

Além desta especialidade que acompanha a história da casa há muitos anos, a cozinheira também faz borrego assado no forno, migas de espargos com entrecosto e açorda de marisco, entre outros, além dos pratos do dia. O vinho é servido a jarro e, para sobremesa, a sugestão recai sobre o arroz doce caseiro: “pode haver igual, mas não há melhor”, afiança Maria, bem-disposta, antes de voltar para a cozinha.

A SERRA DE S. MIGUEL, uma das elevações que marcam a paisagem de Sousel, é o lugar ideal para passear (e fazer a digestão). Forrada por olivais e outras espécies mediterrânicas, é habitat de coelhos, lebres, perdizes e tordos. A caminho do topo encontram-se antigos fornos de cal – matéria usada para caiar as casas -, e no planalto a 328 metros de altitude ergue-se a CAPELA de Nª. SRª. do CARMO.

Esta igreja do século XVIII só abre na segunda-feira de Páscoa, durante a romaria em honra da santa padroeira de Sousel. No adro dá para imaginar a grandeza do convívio que se estende pelo parque de merendas, entre vinho e borrego assado. Ponto alto é também a tourada anual que decorre na PRAÇA DE TOUROS PEDRO LOUCEIRO, que o município crê ser “uma das mais antigas da Península Ibérica”.

No local há ainda um baloiço posicionado para tirar fotografias, com o vale ao fundo. Descida a serra, descobre-se, no centro da vila, o PORTA A PORTA. A decoração original e o nível do serviço confirmam que este “não é um restaurante de comida tradicional”, e quem o diz é Miguel Grosa, o souselense de 28 anos que decidiu criar um serviço de entregas de comida ao domicílio, durante o segundo confinamento.

A mãe, Paula Cruz, anfitriã de mão-cheia e fadista nas horas vagas, é quem ajuda na cozinha e serve às mesas as “tapas modernas” do Porta a Porta. Nas propostas há, por exemplo, croquetes de presunto com molho de vinho do Porto, bruschetta de perna de borrego confitada e até uma francesinha à moda do norte. “Enquanto se come não se envelhece”, já dizia o ditado. Do balcão saem vinhos locais e cocktails.

 

Consolo espiritual e de estômago

Nesta caixinha de surpresas do Alto Alentejo também não faltam atributos culturais, a começar pelo MUSEU DOS CRISTOS, instalado num moderno edifício municipal. Com tempo, podem ser admiradas cerca de 200 imagens de Cristo, pertencentes a uma coleção com 1486 peças comprada pelo município aos herdeiros de Venceslau Lobo, colecionador de Borba, para que não saísse do país.

A aquisição foi polémica, na altura, mas especialistas em arte sacra confirmaram tratar-se de uma coleção com caraterísticas únicas: além de imagens de Cristo há bustos, crucifixos de altar, calvários e cruzes processionais, construídos em madeira, cerâmica, pedra e metal. A exposição organiza-se em seis núcleos, sobre os estilos decorativos do século XIII ao século XX, e inclui painéis interativos.

(Fotografia de Rita Chantre/GI)

Quem visita o museu é convidado, ainda, a percorrer a nova ROTA DAS IGREJAS, que além de dar acesso ao interior de três tempos no núcleo urbano, promove a sua “conservação e restauro”. Integram o projeto a Igreja de Nossa Senhora da Orada, adornada com azulejos do século XVIII; a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Graça de Sousel, do século XVI; e a Igreja do Convento de Santo António, do século XVII.

Por sua vez, consolo de estômago é o que garante a TABERNA O TIAGO, próxima do museu. Esteticista de profissão, mas cozinheira por vocação, Célia Delgado uniu esforços com a nora, Sónia Rosado, e relançaram a casa, da qual ficou só o nome do antigo dono. Da cozinha saem os pratos de conforto que se pedem no Alentejo: cação panado com migas de tomate, bacalhau no forno com camarão, entre outros.

E de sobremesas? Há sericaia com ameixa de Elvas, leite creme de poejo, mousse de chocolate e farófias – tudo caseiro, pois o negócio também é uma pastelaria e padaria de fabrico próprio. “De vez em quando, temos borrego”, partilha Célia. Numa terra que se autoproclama “a capital do borrego”, tanto a nível económico como a nível turístico, esta carne, tão tenra e saborosa, nunca pode faltar à mesa.

 


O fumeiro da D. Octávia

Se há enchidos e fumeiros que adornam, com cor e sabor, as mesas alentejanas – e não só -, são os da D. Octávia. Aos 74 anos, Octávia Rebelo mantém-se à frente da Salsicharia Canense, na freguesia do Cano, com toda a energia e o saber-fazer acumulado, dedicando-se à produção de enchidos de porco preto fumados em lenha de azinho. Do “cardápio” fazem parte os lombos, o painho, o chouriço e o paio; a farinheira, a cabeça de xara, a morcela cozida, a paia de toucinho e a morcela, entre outras peças. “É uma vida dura”, confessa, atirando que qualquer dia se reforma, mas o filho, João Roberto, de 56 anos, ri-se afastando a ideia. Os clientes fiéis, famosos e anónimos, portugueses e estrangeiros, agradecem.

(Fotografia de Rita Chantre/GI)


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