Caramulo: passear na serra onde o ar é mais puro

Caramulo Experience Center. (Fotografia de Maria João Gala/GI)
Depois de anos de declínio, a vila renasce com pequenos hotéis familiares e a gastronomia beirã. O mel assume um protagonismo inusitado, o barro mostra-se sem pudor, e a natureza acompanha esta viagem.

José Prazeres Ferreira caminha com passo certeiro entre as ruas do Caramulo, enquanto vai nomeando os donos das casas ali erguidas à sombra dos sanatórios. Por estes dias, o ar que se respira na vila continua a ser tão puro como há 100 anos, quando o médico Jerónimo Lacerda ali se instalou, dando início a um sub-sistema de saúde que trataria milhares de doentes com tuberculose. Avista-se a mesma serra, o mesmo “mar de nuvens” – como lhe chamam ali – e o Caramulinho, o ponto mais alto: 1071 metros acima do nível do mar. Mas passou muito tempo desde a ascensão e queda da vila, que a partir do final dos anos 60 entrou num processo de decadência vincado, culminando com o encerramento da estância sanatorial, em finais de 70.

Com o fim desse tempo ruíam também todos os pilares do desenvolvimento social e turístico. Depois vieram sucessivos projetos e outros tantos falhanços. Até que agora, um século depois de ter desabrochado, o Caramulo parece finalmente dar sinais de renascimento. Não à custa de quem venha de fora, com ideias megalómanas (como tantas vezes aconteceu), mas graças à gente da terra, aos que ficaram, e aos que regressaram. Foi o caso de Catarina, a filha do meio de José Ferreira. É ela o rosto do BeeCaramulo, o primeiro hotel em Portugal exclusivamente dedicado ao mel.

BeeCaramulo é primeiro hotel em Portugal exclusivamente dedicado ao mel. (Fotografias de Maria João Gala/GI)

O hotel nasceu da recuperação de uma casa velha, pelas mãos da família Ferreira.

A família Ferreira já há muitos anos que se dedicava à apicultura, primeiro através de Henrique, o filho mais velho do patriarca José, depois com a ajuda do mais novo, Isidro. Mas foi o regresso à terra de Catarina que despoletou a mudança. Aconteceu depois dos incêndios de 2017, que também deixaram um rasto de destruição por ali. Porém, a história da empresa fora marcada por outro incêndio, o de 2013. “Poucos meses após a sua constituição, no Verão de 2013, ocorreu um dos maiores incêndios de que há memória, e a empresa perdeu boa parte do seu efetivo apícola”, conta à Evasões Catarina Ferreira, uma engenheira agrícola que trocou as explorações de fruta no Oeste pelo apiturismo. Juntou-se à família, recuperou uma velha casa, e criou o primeiro hotel dedicado ao mel em Portugal. “O que aqui fazemos não é apenas vender noites aos turistas. Queremos que tenham uma experiência com a nossa serra, com a nossa terra”, sublinha. É por isso que possibilitam uma visita às colmeias, e toda a a experiência na produção de mel.

Catarina Ferreira, uma das responsáveis pelo projeto familiar.

Seguimos estrada abaixo com o pai, José, um resistente que gosta de contar as voltas que a vida deu, um longo caminho para a liberdade e independência da família. Ele que viria a ser um dos últimos doentes tratados na estância sanatorial, recuperou da tuberculose e hoje, aos 75 anos, ainda corre maratonas. Por hoje, ficamo-nos pela caminhada entre o hotel e as colmeias. Ocupa agora os dias entre o mini-mercado da família e a ajuda aos filhos no apiturismo. Pela manhã, traz mel aos clientes no seu estado mais puro. Memória viva da terra, é uma fonte inesgotável de histórias antigas, do património da região.

O ambiente familiar do Beecaramulo convida a serões à lareira, chá e mel. Mas também há massagens com mel e outros cuidados de bem-estar, como o banho de imersão com ofurô com mel e plantas medicinais.

A serra vista do miradouro do Cabeço da Neve, concelho de Tondela.

Saborear a Montanha

É de lareira acesa que os restaurantes do Caramulo recebem os visitantes, num registo acolhedor que nos transporta para um ambiente bucólico, uma espécie de serões de província fora das páginas de Júlio Dinis. É assim no Montanha, inspirado nos chalés Suíços. Mas foi na Bélgica que o proprietário, Paulo Ferreira, foi emigrante. Regressou à terra em 1999, e idealizou “um restaurante que se enquadrasse na montanha”.

Por ali continuam a confecionar-se os pratos mais típicos da região: rojões, cabrito assado no forno, chanfana ou costeletas de borrego. Mas o arroz de pato é uma especialidade sempre procurada. O mesmo acontece com o bacalhau assado com migas, o polvo ou o rosbife. Paulo é dono de uma discografia invejável, cujas capas usa para decorar o andar de cima. Talvez por isso a banda sonora é também criteriosamente escolhida. Vai bem com a mousse de café ou com os papos de anjo, junto à lareira, claro.

O arroz de cogumelos do Montanha.

Os pratos típicos da região servem-se à mesa deste restaurante.

O admirável espólio do Museu

Na vila, sente-se um misto de saudosismo e melancolia, agora envolto em esperança na recuperação do património abandonado. João Lacerda, bisneto do fundador da estância sanatorial, personifica bem toda essa mescla de sentimentos . “O Caramulo foi uma ‘mini cidade’, projetada e planeada com pés e cabeça. Destacou-se muito no plano científico e de infraestruturas criadas de raiz para a Estância Sanatorial, onde nada foi deixado ao acaso, desde as espécies que foram plantadas, a estação de tratamento de lixos, esgotos, saneamento básico, as brochuras publicitárias, vias de comunicação, produção e independência energética como a barragem, quintas para produção de alimentos”, conta à Evasões, numa visita ao Museu do Caramulo, gerido pela Fundação Abel e João de Lacerda (ambos falecidos), respetivamente tio-avô e avô de João, que continua a viver ali.

Apaixonados por arte e automóveis, os dois irmãos deixaram ao Caramulo e ao país uma das maiores coleções/exposições permanentes visitáveis. A família instalou-se ali na serra nos anos 1920, através de Jerónimo Lacerda, um jovem médico acabado de regressar da primeira grande guerra. “Tendo passado a sua juventude em Tondela, conhecia bem a serra do Caramulo (…)porque acompanhava algumas vezes o pai nas suas visitas como subdelegado de saúde”, escreve no livro “Caramulo – ascensão e queda de uma estância de tuberculosos”, o médico António José de Barros Veloso.

O Museu do Caramulo, gerido pela Fundação Abel e João de Lacerda.

Todo o espólio do museu (o segundo em Portugal construído de raiz para esse fim) foi doado aos fundadores. Falamos de obras de Picasso, Vieira da Silva, Amadeo de Souza Cardoso, entre muitos outros de renome, divididos nas diversas coleções. A paixão pelos automóveis tem atravessado gerações na família Lacerda, como se percebe pela exposição fotográfica que acompanha os clássicos. Atualmente, o museu é enriquecido com uma oficina, no Caramulo Experience Center.

O Caramulo Experience Center veio enriquecer a oferta do Museu do Caramulo.

É à boleia de um Porsche 911 E 2.4, à beira de comemorar 50 anos, que subimos ao Caramulinho. Dali, a vista é soberba. Há sempre quem aproveite para fazer caminhadas, andar de bicicleta ou Todo-o Terreno, já que a serra convida a isso . Quem nos guia é Pedro Cardoso, um advogado que trocou o bulício de Lisboa pela paixão dos automóveis. “Comecei por vir às corridas como voluntário, fui estreitando relações com a família [Lacerda], até que acabei por mudar de vida, mudando-me para cá”. Deixou os tribunais e dedica-se agora à Fundação. Por estes dias, também ele anda à procura de casa para restaurar e lá morar, na vila. São muitas, denunciando uma arquitetura com assinatura(s), a partir da Art Deco.

Este Porsche 911 E 2.4 está à beira de comemorar 50 anos.

Desse quadro de recuperação que começa a pintar-se na vila faz parte o Museu do Brinquedo Depois do encerramento da estância sanatorial (que incluía um total de 19 sanatórios), alguns dos edifícios acabaram por ser convertidos em lares de idosos, mas outros mantêm-se ainda ao abandono. É o caso do antigo sanatório infantil, um edifício da autoria de Pardal Monteiro. “Temos um espólio imenso, que há anos anseia por um espaço”, conta João Lacerda, um dos entusiastas do projeto, agora em fase de candidatura na Câmara de Tondela. Paralelamente, está em construção o Museu da Estância Sanatorial.

Pelas ruas da vila, a caminho de um passeio que nos há-de levar à Fonte dos Amores, encontramos Maria Domingues, 83 anos, que orgulhosamente enverga uma capucha, a capa feita de burel. “A capucha e a merenda nunca carregou ao pastor”, esclarece esta anciã, enquanto vai exemplificando as diversas formas de usar esta espécie de capa, “que guarda o frio e a chuva, mas também servia de apoio para levar os filhos no regaço enquanto nos deixava as mãos livres, ou para fazer a molhelha carregar o que fosse preciso”.

Maria Domingues com uma capucha em burel.

É na Oficina do Burel que o tecido é hoje trabalhado em diversas peças, na antiga escola primária da vila. Luís Costa, o professor fundador da Associação CEIS Caramulo, fala com orgulho do estudo e preservação destes costumes, a que se dedica. Para além das oficinas de formação e das diversas atividades, é possível ali comprar (por encomenda) peças em burel, incluindo capuchas, hoje já em cores diversas e não apenas em preto, como se usava antigamente.

A Oficina do Burel deu nova vida a uma antiga escola primária.

À descoberta de Jueus

Deixamos a vila e seguimos em direção a Jueus, que integra a rede Aldeias de Portugal. Ali restam apenas cerca de 30 habitantes, mas onde “30% são crianças”, há-de contar o presidente da junta, Ricardo Loureiro. “Em alguns aspetos parece que está parada no tempo. Trabalha-se da mesma forma como se trabalhava na década de 30 e de 40, e isso não é necessariamente mau. É uma opção de vida desta gente”. É aqui que encontramos o restaurante Casa do Lagar do Miradoyro, que integra um projeto de turismo rural do casal Nuno Ferreira e Paula Longra.

Há dois pratos obrigatórios por ali: o bacalhau à casa e os rojões à moda da beira. Os apreciadores de cabrito também encontram essa especialidade, mas apenas por encomenda. Depois há toda uma panóplia de pratos de carne que concorrem com a lagarada de bacalhau. Nuno é um orgulhoso filho da terra que traz à mesa os grelos colhidos na horta, a dois passos da mesa. O espaço é, todo ele, um miradouro sobre a serra. Mas para se apreciar a vista é preciso sair, admirando toda a aldeia.

O Restaurante Casa do Lagar Miradoyro, em Jueus.

Os rojões são uma das especialidades do Casa do Lagar Miradoyro.

Poderíamos passar dias só em passeio ao ar livre, a absorver a beleza da paisagem. Mas o caminho entre o Caramulo e o restaurante Arpuro, na aldeia de Covelo de Arca, faz-nos atravessar durante minutos uma florestal densa e bela. À nossa espera estão os irmãos Júlio e António Malafaia, o primeiro dedicado à sala, o segundo à cozinha. Vista de cima, a aldeia parece um presépio à escala. O restaurante integra, afinal, um projeto de turismo sustentável, cuja principal motivação “é a conservação e promoção do património local, tal como a reativação das dinâmicas rurais da aldeia”, conta Júlio Malafaia, promotor deste investimento, que ainda não terminou.

Cá fora, uma casa de madeira ostenta um letreiro que há de ser o nome da loja: “hortaliça”. “A ideia é comprar os produtos excedentes produzidos pelas pessoas aqui da aldeia, e vender na loja”, conta à Evasões, ele que no final dos anos 80 abriu o primeiro bar da região, na vila do Caramulo, e que soma uma vida dedicada à restauração e hotelaria. Na cozinha, o irmão António prepara uma das especialidades da casa: bacalhau com migas. Melhor fora que soubéssemos o que ainda estava por vir: um original crumble de maçã servido com gelado de baunilha.

O crumble de maçã com gelado de tiramisù do Arpuro.

Os irmãos Júlio e António, responsáveis pelo restaurante na aldeia de Covelo de Arca.

No regresso ao Caramulo, sob um sol de inverno que não disfarça o frio antecipado da noite, ainda há tempo de espreitar a Reserva Botânica de Cambarinho, embora os loendros floresçam apenas entre maio e junho, pintando então de roxo e rosa-fúchsia as margens da ribeira. Por ora, é de verde que se veste o Caramulo, sempre fresco, sempre puro, o mesmo que já antes da estância sanatorial era aconselhado para curar maleitas do corpo e da mente.

O barro preto de Molelos

Tempos houve em que o louça de barro era corrente nas cozinhas da região – e do país. Hoje, a cerâmica feita em argila (cuja cor se transforma no processo de cozedura) assume um misto de decoração e utilitário conceituado. É na aldeia de Molelos que ainda resistem várias olarias, como a Artantiga, da família Lourosa. José, 45 anos, é o mais novo oleiro da aldeia, herdeiro de um ofício que passou dos bisavós para os avós. “Hoje 70% da nossa produção é utilitário”, conta o oleiro, enquanto molda uma assadeira. É em tachos desta matéria que se faz o melhor arroz de forno – assegura.

A olaria Artantiga, em Molelos.

INN Caramulo – a nova vida da antiga estalagem

Um dos símbolos turísticos do Caramulo foi durante anos a Estalagem de São Jerónimo , inaugurada em Julho de 1963. O edifício, da autoria de Alberto Cruz, haveria de integrar mais rede a rede das Pousadas de Portugal. Mas o declínio do Caramulo fechou-o durante 12 longos anos. Até que o empresário José Luís Longra adquiriu o imóvel e reabriu o hotel, agora como Inn Caramulo. São 12 quartos e seis suites onde voltaram a abrir-se as imensas janelas, com vista privilegiada sobre a montanha. Entre os quartos e a sala de jantar, lá continua a enorme lareira, que em diversas épocas sempre fora apreciada pelos hóspedes. O restaurante é aberto ao público em geral.

O Inn Caramulo Hotel tem 12 quartos e seis suites.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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