Caminhar entre lendas e lustres na Serra da Lousã

Aldeia de xisto da Cerdeira (Fotografia de Matias Novo)
Era uma vez uma serra carregada de lendas e de lustres inopinados, pendurados em árvores que escondem lágrimas de uma princesa sonhada. Uma serra que só se conhece bem caminhando e entrando de corpo e alma em aldeias de xisto que nos transportam no tempo.

Seria Arunce, mítico rei muçulmano, a dar nome ao lugar. Seria dele o castelo. De Arouce ou da Lousã, sendo que então não haveria Lousã. Havia Arunce e a filha, Peralta, bela e perdida de amores por Lausus, o homem com que o rei lutou até morrer e que daria nome à Lousã. Seria Peralta, a bela, a procurar o pai por vales e montes, com os criados, até Vénus fazer dela sereia e deles montanhas, aquele abraço de alturas que hoje é a serra da Lousã. Seria morta pelo tempo, Peralta, no castelo do pai, cujas paredes ainda gritarão os lamentos dela. Seria. Não sabemos.

(Fotografia de Matias Novo)

 

O que sabemos é que a primeira vez que percorremos os caminhos dessa princesa mítica, parámos estacados rio adiante, no regaço da montanha, junto à central elétrica. Ali, entre a ramagem densa, brilhava um lustre, pendurado na Natureza, um lustre como o das salas dos castelos de reis e princesas, a tilintar porque era dia de chuva e vento, a tilintar como que a acompanhar o latido do pastor alemão do zelador do lugar. Pareceu-nos, a nós que gostamos de inventar lógica a tudo o que se nos oferece, que aqueles cristais eram o brilho do véu de Peralta. Pareceu-nos que tudo aquilo que é a Lousã era pasto de lendas e contos de fadas, porque nada daquilo parece real de tão belo.

Castelo de Arouce (Fotografia de Matias Novo)

 

Mas terá realidade por detrás daqueles montes. Do castelo, todo de xisto como as aldeias que à roda dele cresceram, há um referência do ano de 943, num contrato entre um moçárabe, Zuleima Abaiud, e o abade Mestúlio, de Lorvão. Segue-se um Sesnando Davidis em 1080 e aí se acha raiz da edificação, que logo foi parar a mãos muçulmanas em 1124 e logo recuperado e por aí adiante que de História rezam os livros e não estamos aqui para os folhear. Estamos aqui para louvar o que desses tempos nos resta: uma torre de menagem do século XIV num castelo altaneiro que fica num vale, o mais belo dos contrassensos, que impressiona tanto quando é visto de cima, do trilho que nos desce do Talasnal, como de baixo, do Burgo que é restaurante de lamber as falanges, ou da ermida da Nossa Senhora da Piedade, ali ao lado, num santuário encaixado em curvas de lousa, achámos sempre que Lousã era daí, da lousa dos caminhos.

Pois que talvez seja do Lausus de Peralta, ou de alguma vila romana, quem sabe, ou da dita lousa, ardósia, xisto, uma espécie de forma dele, que aqui é a nação dessa rocha feita teto nas mais belas aldeias de Portugal.

 

Cinco aldeias de xisto
E são elas que nos trazem aqui, a estas linhas. A Lousã acolhe cinco das 27 aldeias de xisto referenciadas: Cerdeira, Candal, Talasnal, Chiqueiro, Casal Novo, a que se juntam os núcleos de Catarredor e Vaqueirinho. Brotaram como povoações efetivas no século XVIII, ainda que já antes existissem como poisos sazonais, e só entraram em declínio a partir da década de 1960. Hoje estão parcialmente recuperadas, para residências artísticas, turismo e, algumas (demasiado poucas) vezes, para habitação. E escondem pérolas como varandas para o infinito e mesas irrepetíveis como a da Ti-Lena, no Talasnal.

Cerdeira (Fotografia de Matias Novo)

 

A mais bonita forma de descobri-las é mesmo seguir os trilhos de Peralta, esses percursos marcados (PR) que em poucos quilómetros nos põem da Lousã num mundo que parece ter parado lá longe, no tempo em que os sons eram só da água a correr pelos regatos, a humidificar a lousa de ruas que são escadarias, que todas as aldeias nasceram nas encostas, numa estafa de desnível sem nome.

Taberna do Talasnal (Fotografia de Ivete Carneiro)

 

Descoberta a pé
São sete os percursos, muitos enganchados uns nos outros, com um ponto a que nunca se foge, ou quase: o castelo de Arouce. Será o ponto fulcral, aquele que nunca se vê da Lousã, apesar de ser dela. E depois há aqueloutro percurso, novo, desenhado por gente de sapatilhas de corrida sobre as pegadas dos antepassados, o Trilho dos Moleiros, em cujas pedras ao longo da Ribeira da Fórnea os ditos moleiros, à espera que o cereal moesse nos moinhos, faziam contas às vidas deles e de outros e selavam negócios. Hoje há letras amarelas a atribuir bancos de pedra ou de toros a este ou àquele moleiro, num caminho que nos sobe como subiam os burros ao Terreiro das Bruxas, esse parque de merendas em que esperamos ver elfos a passar a qualquer momento.

Se dali podemos esticar a perna e dar de cara com as primeiras paredes do Casal Novo, o melhor será, ainda assim, manter o passo nos PR, quase sempre muito bem assinalados (ou então assumir a preguiça e agarrar no volante, que todas as aldeias estão à mão de uma qualquer estrada de montanha, haja estômago para as curvas). Cinco deles culminam no castelo, de uma forma ou de outra. E, juntos, levam a todas as Aldeias de Xisto.

Ponte do PR1 (Fotografia de Ivete Carneiro)

 

Os sinais dos tempos fazem-se notar em dois pontos da serra, spots de Instagram e redes afins: as “letras” acima do Casal Novo, que clamam em grande e gordo “Isto é LOUSÔ, com vista para a vila, lá em baixo; e o baloiço do Trevim, o ponto mais alto, aos 1200 metros de altitude, não raras vezes nas nuvens.

Debaixo delas, das nuvens, há segredos como a fábrica de papel, a primeira da região de Coimbra “e talvez de Portugal”, criada em 1714 pelo empresário de origem italiana José Maria Ottone, que era esperto e viu na Lousã o lugar ideal: serra de água abundante (rio Arouce e rio Ceira), florestas ancestrais e fartas e gente pronta para trabalhar, sobretudo na época baixa da agricultura, além de se fazer por ali muito linho cujo trapo serviria para o papel de maior qualidade. E isto com Coimbra e toda a sua cultura universitária ali à mão. Hoje chama-se Companhia de Papel do Prado (Prado – Cartolinas da Lousã, S.A.), tem 130 funcionários e um Centro Cultural e Recreativo.

Depois dela, nasceu a Central Hidroelétrica da Ermida, a montante da Ribeira de São João. E se o nome desta mini-hídrica remete para um contexto feio, de indústria, a verdade é que não o é. Construída em 1927 para dar luz à Lousã e energia à fábrica de papel, está inserida numa curva da paisagem, abrigada pela vegetação, numa imagem de paraíso só perturbada pelos latidos do cão pastor do zelador, que ali vive. Foi ali, naquele pátio bucólico, que ouvimos e vislumbrámos os cristais do véu de Peralta, soltos, tilintantes, puros. Fechem os olhos. É isso…

 

Certificação do céu escuro
As aldeias de xisto oferecem “um dos céus mais estrelados do Mundo”, “um céu tão escuro e limpo que é possível observar a Via Láctea a olho nu, como o fizeram durante milénios os nossos antepassados”. A certificação internacional Destino Turístico Starlight é atribuída pela Fundação Starlight quando um lugar reúne condições de visibilidade, transparência e escuridão do céu, o número de noites com céu limpo e o compromisso dos agentes locais na sua preservação. Uma benesse que resulta de “uma (aparente) debilidade em termos de desenvolvimento”: a desertificação e a falta de atividade económica reduziram a poluição luminosa. A isso soma-se o facto de a região ter um relevo enrugado e estar numa zona orográfica muito particular da cordilheira central que a protege da poluição luminosa do litoral.

 

Palácio dos Salazares
Construído no século XVIII a mando de Bernardo Salazar Sarmento de Eça e Alarcão, pai da Viscondessa do Espinhal, este Imóvel de Interesse Público (desde 2002) alberga o Octant Lousã. Casa brasonada com escadaria interna e salões que conservam o charme da nobreza de outrora, é um hotel sem classificação que se quer entre as quatro e cinco estrelas. Plantado no centro histórico da Lousã, em frente à Misericórdia, oferece quartos confortáveis, bar e restaurante de charme, piscina e todo um conceito virado à Natureza.

Palácio dos Salazares – Octant Lousã (Fotografia de Ivete Carneiro)

Os PR: Percursos Pedestres de Pequena Rota

PR1
É o Caminho do Xisto da Lousã – Rota dos Moinhos, que percorre o centro histórico, passa pela Senhora da Piedade e pelo Castelo de Arouce e regressa junto à Ribeira de São João, parte em passadiço.
distância 6 km | elevação 190 m | descida 190 m | tempo 2.30 horas

PR2
Dito das Aldeias de Xisto, parte do Castelo para a Senhora da Piedade e daí sobe ao Talasnal e ao Casal Novo, duas das mais emblemáticas aldeias, numa viagem no tempo que percorre os passos dos antigos habitantes nos únicos acessos que tinham à vila.
distância 5,4 km | elevação 420 m | descida 420 m | tempo 3 horas

PR3
É a Rota da Levada, arranca na aldeia de xisto da Cerdeira, uma das mais completamente recuperadas e lar de residências artísticas. Segue até à belíssima aldeia de xisto do Candal, ainda parcialmente habitada por moradores permanentes, daí seguindo a Ribeira de São João que alimenta as piscinas naturais da Senhora da Piedade. Parte do trajeto é pela levada que conduz a água até à Central Hidroelétrica da Ermida.
distância 6,8 km | elevação 400 m | descida 400 | tempo 3.30 horas

PR4
PR4 ou Rota das Quatro Aldeias, arranca na aldeia de xisto do Candal, sobe às aldeias de Catarredor e Vaqueirinho (que não estão integradas na rede) e culmina na aldeia de xisto do Talasnal, que é segura¬mente a mais turística, com diversas opções de aloja¬men¬to. Daí, desce-se ao Castelo e à Senhora da Piedade.
distância 9,9 km | elevação 450 m | descida 450 m | tempo 5 horas

PR5
É a Rota dos Serranos, que parte do Castelo, segue até à Central Hidroelétrica, cruza a Ribeira de São João, sobe à aldeia de xisto do Talasnal, de onde um caminho florestal segue para a aldeia de xisto do Chiqueiro e daí para a aldeia de xisto do Casal Novo, descendo para o cruzeiro e regresso à partida.
distância 6,4 km | elevação 500 m | descida 500 m | tempo 3 horas

PR6
Dá pelo nome de Rota dos Baldios, inicia-se na Senhora dos Remédios (Vale da Nogueira), subindo a Ribeira da Fórnea e parte do Trilho dos Moleiros até às hortas, passando por espécies como o pinheiro-bravo, o carvalho, o castanheiro e a nogueira. A salamandra-lusitânica e a rã-ibérica são companhias ocasionais.
distância 7,8 km | elevação 200 m | descida 200 m | tempo 3 horas

PR7
Parte do Terreiro das Bruxas “À Descoberta da Floresta”.
distância 4,3 km | elevação 150 m | descida 150 m | tempo 2.30 horas

 

VISITAR
O “Burgo”
O Castelo de Arouce e o santuário mariano de Nossa Senhora da Piedade compõem um lugar antigamente conhecido como Burgo, hoje nome do restaurante vizinho. Junto estão as piscinas da Praia Fluvial da Senhora da Piedade. O Castelo é Monumento Nacional e integra a Rede de Castelos e Muralhas do Mondego e inclui um Centro de Interpretação e Acolhimento, abertos sextas, sábados, domingos e feriados, das 9.30 às 12.30 horas e das 14 às 17 horas.

Capela da Misericórdia
Edificada no século XVI, sofreu pesados danos durante as invasões francesas em 1811. Em 1873, é feita sede da freguesia por destruição da Igreja Matriz.

Estação da Lousã
O Ramal da Lousã abriu em 1906. A estação exibe oito painéis de azulejos de Jorge Colaço desde 1936, que retratam o património monumental natural e edificado da Lousã. O serviço ferroviário foi extinto em 2009.

Cabril do Ceira
Também conhecida como “Portas do Ceira”, é uma praia fluvial enquadrada por um canhão quartzítico ainda pouco frequentada na freguesia de Serpins. Acessos por estrada de terra batida.

Aldeias de Xisto
A rede das Aldeias de Xisto, criada em 2001, junta povoados das regiões de Coimbra, Viseu, Guarda, Covilhã, Castelo Branco, Abrantes e Pombal. As 27 Aldeias do Xisto distribuem-se por um território de cinco mil quilómetros quadrados e 21 concelhos em quatro unidades territoriais: Serra da Lousã, Serra do Açor, Zêzere e Tejo-Ocresa. Cinco dessas aldeias pertencem ao concelho da Lousã: Candal, Casal Novo, Cerdeira, Chiqueiro e Talasnal.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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