À descoberta das festas de inverno com a máscara ibérica

Miradouro da Fraga do Puio. (Fotografia de Maria João Gala/GI)
O calendário festivo das Terras de Trás-os-Montes também se faz pela linha de água do Douro-Duero, uma porta que abre o acesso às Festas de Inverno transfronteiriças, pelo lado mágico das máscaras e dos mascarados, que misturam o sagrado e o profano nos 12 dias entre o Natal e os Reis.

Pelas ruas de São Pedro da Silva, em Miranda do Douro, segue um inusitado cortejo com dois casais: um velho mascarado e uma matrafona, mais dois jovens bailadores, representando o masculino e o feminino. O passo atribulado, pontuado por uma ou outra queda do velho, com as deambulações eróticas da matrafona, que levanta a saia até ao joelho, são marcados pelo ritmo da música da gaita de foles mirandesa – que ainda se produz manualmente na aldeia de Constantim pelo artesão Célio Pires- associada à caixa e ao bombo, presenças constantes nas arruadas no Nordeste Transmontano.

Esta é a festa do Velho e da Galdrapa, celebração de um ritual ancestral, associado à fertilidade, inserida nas chamadas Festas de Inverno, Festas de Santo Estevão ou Festas dos Rapazes, que o povo não deixou morrer em vários concelhos do Alto Douro, como Miranda do Douro e Mogadouro, por alturas do Natal e do Ano Novo, ou Lazarim, em Lamego, no Douro vinhateiro, já pelo Carnaval. Nesta vila existe o Centro Interpretativo da Máscara Ibérica onde se podem ver exemplares de cerca de 30 mascaradas portuguesas e espanholas, pois a tradição persiste em ambos os lados da raia e chega à província de Zamora.

A festa do Velho e da Galdrapa, em São Pedro da Silva. (Fotografias de Maria João Gala/GI).

Estas localidades instaladas ao longo do Douro apresentam o maior leque mundial de tradições ancestrais baseadas nas máscaras e nos mascarados entre o Natal e o Carnaval, mas é nas próximas duas semamas que acontece o maior número. “A festa do Velho e da Galdrapa, no dia de Santa Luzia, 13 de dezembro, que este ano se realizou excecionalmente a 18, é preparatória do grande ciclo dos 12 dias no Nordeste Transmontano, que começa 25 de dezembro e termina a 6 de janeiro, nos Reis”, explica António Tiza, presidente da Academia Ibérica da Máscara.

São estas celebrações populares, com todo o ritual do solstício de inverno, que resgatam ao tempo e à memória um lado místico e telúrico da região, que abre a porta ao verdadeiro reino maravilhoso. Afinal, o Douro não é só vinhas, nem provas de vinhos ou passeios de barco. “Há mistério”, refere António Tiza.

Há cerca de 30 exemplos de mascaradas portuguesas e espanholas em Lazarim.

Exemplares de peças expostas no Centro Interpretativo da Máscara Ibérica.

No Nordeste Transmontano as máscaras tomam conta do calendário festivo e os protagonistas são os caretos que saem à rua para expulsar o mal, manifestar a virilidade e dizer que se inicia um novo ciclo, onde tudo se regenera. Sobretudo, saem para fazer a festa.

As celebrações são uma espécie de porta de entrada num mundo de demónios, máscaras e mascarados, tão agrestes e surpreendentes como as arribas do Douro Internacional, cobertas por fragas. Em Miranda do Douro realizam-se ainda a Festa das Morcelas ou da Mocidade, em Constantim, 28 e 29 de dezembro, e a Festa do Menino Jesus de Vila Chã da Braciosa, a 1 de janeiro. Em todas elas o povo requisita figuras assustadoras que transformam rapazes em chocalheiros, caretos e diabos, marcados pela irreverência, que os faz andar pela rua e não deixar ninguém sossegado.

Em menos de duas semanas, a raia é palco de uma imensa recriação de costumes ancestrais, que antigamente eram ritos de passagem dos jovens à idade adulta. “Esta concentração de festas no distrito de Bragança e na província de Zamora é a maior do mundo. Pode acontecer uma festa ou outra, num ou noutro ponto da Europa, mas com esta dimensão, em tão pouco tempo, não se conhece outra”, vinca António Tiza.

Aqui se misturam o sagrado e o profano em festas que andam no limiar da transgressão quase total dos costumes. São instantes da libertinagem mais associada ao Carnaval, mas que nestas terras acontece num período de grande simbolismo como é o Natal. “Vêm do tempo antes de Cristo, mas que a Igreja cristianizou”, destaca Belmiro Ferreira, da Associação Mais Chocalheiro de Bemposta, em Mogadouro. António Tiza reforça que “a riqueza das máscaras, dos trajes e dos rituais são de uma simbologia extraordinária”.

O Miradouro da Fraga do Puio, em Picote, concelho de Miranda do Douro.

Enquanto se circula entre festas há muito para desfrutar, como uma visita ao Miradouro da Fraga do Puio, em Picote, Miranda do Douro (aldeia onde existe o Eco-Museu Terra Mater), ou à sala Museu de Arquelogia de Mogadouro. Para pernoitar, na Casa das Quintas, em Quinta das Quebradas, Mogadouro, encontra-se silêncio total para retemperar força para continuar a rota das festividades.

A Casa das Quintas, refúgio no concelho de Mogadouro.

O alojamento fica situado em Quinta das Quebradas.

Festa do Chocalheiro ou do Velho

A 25 de dezembro e 1 de janeiro, ou seja, no Natal e no primeiro dia do Ano Novo, um homem (o diabo) vestido com uma espécie de fato de macaco rústico, envergando uma máscara vermelha decorada com chifres, uma serpente (símbolo da fertilidade) e uma salamandra ( associada à mitologia de que é imune ao fogo), com chocalhos à cintura, percorre as ruas da aldeia de Vale de Porco, Mogadouro, a fazer um peditório para o Menino Jesus. Nos bolsos traz cinza que atira aos que encontra. “Os géneros recolhidos são depois leiloados após a missa e o resultado apurado é para a Igreja”, explica Dulcínio Rodrigues, que já vestiu a pele de chocalheiro várias vezes.

Em Mogadouro, faz-se ainda a Festa dos Velhos, em Bruçó, no dia 25 de dezembro, e o Careto de Valverde, também na mesma data.

Dulcínio Rodrigues.

O chocalheiro de Bemposta

Um homem vestido com um mangão (fato negro de burel), o corpo ladeado com uma serpente, usa uma imponente máscara de madeira, negra, enriquecida com elementos como a serpente, salamandra e cornos, onde se espetam duas laranjas, e o queixo em forma de testículo. “Para representar o papel desta figura imponente, que assusta, é preciso ganhar ‘as mandas’, ou seja, um leilão”, diz António Martins, presidente da junta de Bemposta. O chocalheiro sai à rua em Bemposta, Mogadouro, para “recolha da esmola, mas vai assustando quem encontra”, descreveu o autarca.

Vítor Curralo é artesão de máscaras.

Vítor Curralo, artesão de máscaras, diz que é a “altura certa para apreciar estas festividades fantásticas, porque daqui a uns anos poderão apenas ser vistas as suas representações em museus”. Acontece a 26 de dezembro e 1 de janeiro.

Festa do Menino Jesus

A festa começa na noite de 24 de dezembro, véspera do nascimento do Menino Jesus, quando se acende a fogueira de Natal, e que assim há de continuar até 1 de Janeiro, dia em que o farandulo (ou seja, um homem com um vestido negro e com o rosto pintado de fuligem) sai à rua acompanhado da Sécia (um homem vestido de mulher, com rendas na cabeça), do moço (cuja missão é não deixar o farandolo aproximar-se da Sécia) e do mordomo. Também eles andam em procissão pela aldeia de Tó, pertencente ao município de Mogadouro. “As personagens podem representar as estações do ano ou a luta entre o bem e o mal”, refere Ricardo Marcos, presidente da junta de Tó.

A Festa do Menino Jesus de Tó.

Saborear o Nordeste com o que da terra nasce

Aberto em junho no Pinhão, o Bomfim 1896 with Pedro Lemos, é uma marca pintada de fresco no panorama da restauração no Douro Vinhateiro a partir da Quinta do Bomfim, propriedade da família Symington. Com uma vista deslumbrante sobre o Douro, espaço é amplo, quase minimalista, mas com pormenores que marcam a diferença. A cozinha é aberta, e dali saem pratos que conjugam o clássico e o contemporâneo. A variedade é grande e tem por base a gastronomia local. Como o nome revela, o Bomfim 1896 é liderado pelo chef Pedro Lemos, nome incontornável da cozinha portuguesa, com estrela Michelin graças ao restaurante que leva o seu nome, na Foz Velha portuense.

A caldeirada de peixe do restaurante Bonfim 1896 with Pedro Lemos.

O restaurante fica situado no Pinhão.

Muitos quilómetros à frente o Lagar do Nicolau, na aldeia de Azinhoso, em Mogadouro, aposta nos genuínos sabores transmontanos. Propriedade da família de Luís Ferreira, o restaurante é um manancial da aconchegante gastronomia do Nordeste no inverno.

O Lagar do Nicolau, na aldeia de Azinhoso.

Em Miranda do Douro, o restaurante Cimo da Quinta tem ampla oferta de carnes de raças autóctones, como a mirandesa e o cordeiro de raça churra galega mirandesa, bem como pratos de bacalhau e iguarias como a bola doce mirandesa, que na quadra natalícia leva frutos secos.

Miranda do Douro

É uma cidade histórica, cuja elevação remonta ao século XVI, e que chegou a ser sede do bispado em Trás-os-Montes. É rica em património arquitetónico, como a concatedral, o Museu da Terra de Miranda, as ruínas do antigo Paço Episcopal ou a original Rua da Costanilha, que concentra um notável conjunto de edifícios de valor arquitetónico, abrangendo diferentes períodos estilísticos, com interessantes janelas manuelinas e renascentistas, algumas com elementos eróticos. A cidade é sede de um concelho onde se continuam a preservar tradições, quer na dança, quer na música, e onde além de português se fala mirandês, idioma reconhecido como segunda língua oficial de Portugal desde 1999.

O castelo de Miranda do Douro.

Castelo de Mogadouro

Com construção datada dos alvores do século XII, associada à Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo (Templários), a torre que resta do antigo castelo de Mogadouro, ainda visitável, oferece uma boa vista sobre a vila e os campos agrícolas que a ladeiam até onde o olhar alcança. Esta era uma das fortificações estratégicas da linha de fronteira.

A torre que resta do castelo de Mogadouro é visitável.

Transmontanices e o mergulho na região

Esta loja de presentes culturais, localizada no Largo Trindade Coelho, Mogadouro, reúne um conjunto de artigos do mais significativo que Trás-os-Montes dispõe. “Não temos só produtos comestíveis, como compotas, bolos ou chocolates. Temos artesanato, livros de autores transmontanos, instrumentos musicais e muitas outras coisas tradicionais que representam a alma transmontana”, afirma Paulo Carvalho, o proprietário. “Tentamos fazer uma recolha eficaz e representativa da nossa região.”

A loja de artigos culturais Transmontanices, Mogadouro.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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