Rosalvo Almeida: “O Porto é uma lição de tolerância”

Rosalvo Almeida, autor do Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto. (Leonel de Castro/ Global Imagem)
É de Braga, mas viveu no Porto a maior parte da vida. Aos 74 anos, Rosalvo Almeida, neurologista aposentado e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, publica o seu Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto. Um projeto com décadas, pensado para todos os que gostam da cidade e querem saber mais sobre as suas ruas, monumentos e pontes. O volume, com 432 páginas, dá acesso a uma versão digital, logo, pode ser consultado no computador e no telemóvel.

Rosalvo Almeida organizou o dicionário – que reúne mais de 1700 entradas com nomes de ruas, fontes, esculturas, pontes e obras de arte -, fez as fotografias e selecionou os textos. Criou ainda uma palavra, que surge na nota introdutória: portocidade, qualidade que “muitos tripeiros, nascidos ou adotados, têm e gostam de ter” – ele incluído. Esta que é, no fundo, uma declaração de amor a um lugar, está à venda na UNICEPE – Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, livraria e pequena editora à qual ofereceu o livro. O único retorno que vai ter, diz, é “o gozo de o ver andar por aí”.

Em que momento decidiu criar este Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto, e porquê?
Nos anos 1980, andava de bicicleta aos fins de semana, percorria as ruas do Porto, e fui tirando fotografias das estátuas. Talvez nessa altura me tenha lembrado de fazer um álbum de estátuas. Depois, pensei: qualquer dia, hei-de fazer um dicionário das ruas; porque não sabia quem era o Tenente Valadim, o Capitão Pombeiro, esses nomes todos postos nas ruas. Aos 70 anos é que comecei a concretizar. Este livro coleciona estátuas, monumentos e obras de arte da cidade. E tem, para cada rua, a explicação do nome, que é citação de uma obra. A cada leitor é oferecida a possibilidade de receber o mesmo texto em PDF. E o PDF tem, à frente de cada entrada, um pequeno ícone – clicando lá, vai direto ao mapa.

Dá para ter essa informação no telemóvel e sair à descoberta da cidade.
Sair à descoberta da cidade, ou ir acompanhado do neto, que diz: ó avô, quem era o Tenente Valadim? E responder imediatamente.

Esta obra nasceu da sua curiosidade.
Exatamente. É um projeto que tem mais de 30 anos e começou quase sem querer, fazendo as fotografias – na altura, em papel. Agora, andei a fazê-las todas outra vez, para as ter em [versão] digital, mas já de carro, não de bicicleta (risos).

Como fez a pesquisa?
Tenho a maior parte dos livros aqui citados. Também há muitos anos coleciono dicionários – tenho 150, das mais diversas coisas, o que ajuda.

E envolveu caminhadas, trabalho de campo?
Obrigou-me muitas vezes a deslocar-me para ir confirmar certos nomes de ruas. Obrigou-me também a passar muitas horas na Biblioteca Municipal do Porto e na [Biblioteca] Almeida Garrett, a procurar explicação para certos nomes que não tinha nos meus livros. E a muita pesquisa de internet, que está citada – na versão em PDF tem a hiperligação, para ir à fonte.

Nesse processo, houve alguma informação que o tivesse surpreendido?
Sim. Uma das curiosidades da compilação das ruas, meti-a numa entrada a que chamei parentescos de topónimos. Há topónimos que são parentes de outros topónimos. Por exemplo, o António Nobre e o Augusto Nobre eram irmãos; o Almeida Garrett e o Antão Almeida Garrett, sobrinho e tio; o Duque de Saldanha era neto do Marquês de Pombal… Também encontrei uma coisa com piada: temos poucos, mas repetidos. Há uma rua Duque de Saldanha e uma rua Marechal Saldanha. A mesma pessoa teve direito a duas ruas da cidade (risos).

Mas o dicionário não tem topónimos só de ruas.
Tem as pontes, por exemplo. O Porto tem, neste momento, seis pontes e meia.

Qual é a meia?
O Cais das Pedras. Chamo-lhe meia ponte, porque entra pelo rio adentro e volta para trás.

(Foto de Leonel de Castro/ Global Imagem)

Fez este dicionário a pensar em quem habita a cidade, em quem a visita, ou nos dois?
Talvez nos dois. Mas sobretudo nas pessoas que gostam do Porto. Inventei uma palavra que uso na nota introdutória: “[o dicionário] pretende ser uma demonstração de portocidade – qualidade difícil de definir mas que muitos tripeiros, nascidos ou adotados, têm e gostam de ter”. O sufixo “idade” quer dizer qualidade, a qualidade de ser Porto, ou de ser portuense, digamos assim. Eu tenho muita portocidade (risos). Curiosamente, a UNICEPE classificou-o como dicionário-carta turística. Quando vi, pensei: não é um guia turístico. Mas tem alguma razão… Também pode ajudar a orientar os turistas – os internos e os externos.

Na contracapa do livro, diz que era para ter sido lançado de modo a coincidir com os 200 anos da Revolução Liberal, depois com os 130 anos da revolta de 31 de janeiro…
A cidade tem muitos, muitos topónimos relacionados com a república e com os princípios republicanos, que vêm desde o liberalismo. O liberalismo não é propriamente um movimento republicano, mas tem os princípios democráticos que depois vêm a enformar a república. Por isso, quando se aproximou a possibilidade de ter o livro pronto, pensámos que poderia coincidir com a revolta liberal de 24 de agosto de 1820. Não se conseguiu e, já que estávamos a pensar na revolta liberal, apontámos para o 31 de janeiro. Saiu um bocadinho atrasado, em agosto, mas dentro dos 130 anos desta tentativa revolucionária.

E, como refere, antes ainda dos 190 anos do Cerco do Porto.
Vão passar agora 190 anos sobre o Cerco do Porto, e acho que se devia fazer alguma iniciativa, porque é um momento marcante da cidade. Mas há vários. E, curiosamente, esses marcos históricos acabam por ter tradução toponímica. Em conjunto com a editora, fizemos uma ligação entre um dicionário que tem, não só as coisas republicanas, como os reis e o Largo da Monarquia do Norte, que foi uma tentativa de restauração monárquica – em condições normais, teria desaparecido com a república, mas ainda aí está. É por isso que digo que há muita tolerância.

No fim, o que se pode concluir sobre o Porto, com base na sua toponímia? É essa lição de tolerância?
É uma lição de tolerância, absolutamente. O Sidónio Pais foi um pequeno ditador, um presidente-rei que foi assassinado. A ordem natural das coisas seria riscá-lo da história, mas temos aqui a Avenida Sidónio Pais. Não temos nenhuma Rua Salazar, mas temos Marechal Gomes da Costa, que foi um dos responsáveis pelo derrube da república e o início do regime fascista. Mas também temos o Afonso Costa [político republicano e estadista], com uma estátua no Campo 24 de agosto. A demonstração de tolerância é a persistência de topónimos mesmo depois de os seus titulares terem caído em desgraça. Claro que há a rua 31 de janeiro, que passou a rua de Santo António, depois a rua 31 de janeiro… ao longo dos tempos foi mudando. Nesse aspeto, o Porto também tem algumas curiosidades. Por exemplo, pouca gente se lembra que a Arca d’Água é a Praça 9 de abril, que comemora a derrota de Portugal na I Guerra Mundial, na Batalha de La Lys. E tem toda a lógica, apesar de ser uma derrota, porque também temos batalhas em que fomos vencedores. Temos Aljubarrota. Também há duas Aljubarrotas, ou melhor, há a rua de Aljubarrota e a rua 14 de agosto, que é a [data da] Batalha de Aljubarrota (risos).

Ainda sobre a questão da tolerância: refere que, na toponímia da cidade, há monárquicos e republicanos, homens e mulheres, reis e cidadãos comuns. Pode dar algum exemplo de cidadão comum que tenha ficado imortalizado?
Sim. Por exemplo, a rua do Cunha. Quem era o Cunha? Era o proprietário que cedeu o terreno para abrir a rua. Há um tipo chamado Pinto Correia que me vi atrapalhado para descobrir quem era. Acabei por descobrir que a escritora Luísa Costa Gomes fez uma peça chamada “O céu de Sacadura” e o Pinto Correia era o cabo artilheiro mecânico que acompanhava Sacadura Cabral no seu último voo – o Sacadura Cabral desapareceu no mar do Norte, e ia acompanhado por um cabo que ficou notável por ter morrido, coitado.

Quanto ao equilíbrio entre homens e mulheres: as mulheres estão muito menos representadas do que os homens.
Isso é natural. As mulheres não têm representado muitos papéis de destaque na sociedade, ao longo dos séculos. Atualmente, as coisas modificaram-se muito, e as mulheres estão cada vez mais a assumir papéis relevantes na sociedade, mas o Porto ainda traduz um predomínio masculino dos seus topónimos, não há dúvida nenhuma. Mas temos topónimos femininos. Desde logo, a Virgínia de Moura, que era uma resistente anti-fascista. Era uma mulher muito valente, muito brava. Assisti uma vez a uma reunião qualquer, tipo comício, em que ela falava com uma energia vital fantástica! Depois, tinha um cabelo com um carrapito, era uma figura também esteticamente saliente.

Onde e como comprar

Apresentação pública

A primeira apresentação pública do “Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto” é no dia 16 de setembro, às 19h, na Casa do Médico, no Porto (Rua Delfim Maia, 405).

Envios por correio

O livro pode ser adquirido, por 20 euros, na sede da UNICEPE (Praça Carlos Alberto, 128-A), ou enviado por correio, com portes grátis. Basta fazer transferência bancária (IBAN PT50 0010 0000 12484870001 06) e enviar o comprovativo de pagamento por e-mail ([email protected]), indicando nome, morada e NIF.




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