Ricardo Delgado, chef do Lua Cheia: “Faça o que fizer, serei sempre artista”

Ricardo Delgado é o chef executivo do restaurante Lua Cheia, na Herdade dos Delgados Nature Hote & Spa, no Alqueva, Alentejo. (Fotografia: DR)
Ricardo Delgado, 42 anos, nasceu em Lisboa e tem raízes familiares na Beira Baixa, de onde os pais são naturais. Formado em Belas-Artes, cursou Cozinha e mostra que ambas têm mais em comum do que se pensa, ao leme do restaurante Lua Cheia, no hotel rural Herdade dos Delgados, em Mourão, no Alqueva. “Faça o que fizer, serei sempre artista”, garante. A “Evasões” foi conhecer o seu percurso.

Ricardo Delgado é o mais velho de dois irmãos – o irmão, Pedro, é quem coordena consigo os destinos do hotel rural Herdade dos Delgados, gerido pela Amazing Evolution – e pode orgulhar-se de já ter vivido muitas vidas. Com raízes familiares em Castelo Branco, na Beira Baixa, e uma forte ligação ao mar de Cascais e do Estoril, onde cresceu a praticar surf, cedo perseguiu a vocação das Belas-Artes, não sem pelo meio tomar o gosto ao webdesign, em Portugal e lá fora. Apaixonado por Cozinha e gastronomia desde sempre, percebeu que podia juntá-la à arte, com sucesso. Passou pela alta cozinha e hoje encara as loiças do restaurante Lua Cheia como telas em branco, onde a criatividade culinária toma lugar, numa composição de cores, cheiros e sabores.

 

Quais são as suas raízes familiares?
A minha família tem costelas na Beira Baixa, pois os meus pais são de Castelo Branco. Eu nasci em Lisboa e cresci entre Cascais e o Estoril, onde os meus pais tiveram uma discoteca muito conhecida – o Bauhaus – durante quase 30 anos. A minha infância e princípio da fase adulta foi vivida um pouco aí. Para mim era mais diversão do que trabalho. Nunca foi propriamente o meu ramo, já que a minha vocação foi sempre mais direcionada para as artes. Daí ter enveredado pela pintura, nas Belas-Artes. Era o que gostava de fazer.

Que raízes manteve em Castelo Branco?
Enquanto os nossos avós maternos e paternos eram vivos, íamos à terra. Passava lá o verão a dar mergulhos na ribeira, na barragem, e a ver as matanças dos porcos. Na altura não percebia, mas já tinha aquela coisa de ir apanhar os peixinhos da ribeira, as rãs. A primeira vez que comi perninhas de rãs foi com sete anos, eu e os meus primos já comíamos aquilo. Quando cheguei à escola de hotelaria e nos apresentaram aquela coisa francesa das pernas de rã, eu já sabia o que era. Queria fruta, ía apanhá-la da árvore. Os nossos avós subsistiam da terra. A terra da minha mãe é Isna de Oleiros. É uma terra muito pequena, com uma ribeirinha que vai fazendo umas cascatas naturais de água gelada. Quase que dava para beber. Não tinha praia fluvial, era um sítio rústico e genuíno. Ali toda a gente tinha as portas abertas, eu entrava na casa de outros tios, ia buscar um pão e lanchava. Hoje em dia já não temos lá família e por isso ir lá é muito nostálgico, mas é bom ao mesmo tempo, porque vimos com uma aura diferente. É um dos sítios onde vou para recomeçar: a casa dos meus avós e a zona da Costa Vicentina. É de onde venho com outra paz.

(Fotografia: DR)

 

Como surgiu a arte no seu percurso?
Quando estava no secundário era péssimo aluno. Se fosse possível, saltava pela janela e fugia das aulas, mas não o fazia. Queria ir jogar à bola, fazer outras coisas. Quando saí da escola secundária e entrei na faculdade para aquilo que realmente queria, comecei a ter as disciplinas de que gostava e que me motivaram: a História de Arte, as pinturas, anatomias, Desenho. Acho que as artes já faziam parte da família e de mim desde muito cedo. A minha avó materna era uma artista por natureza, ela fazia de tudo, desde pinturas a desenhos, e era multifacetada como cozinheira e costureira. Nestas aldeias do interior de Portugal as pessoas faziam de tudo, até eram parteiras. Os meus primos mais velhos eram todos artistas: ou desenhavam bem ou tinham um lado mais artístico que eu herdei. Quando era mais novo já fazia desenhos na escola. Vejo isto quando mostro os livros antigos ao meu filho.

Como reagiu a família a essa vocação?
O nosso pai é um selfmade-man, uma pessoa que com a quarta classe antiga conseguiu ter aquilo que tem e construir a discoteca dele e construir este hotel. Ele foi fazendo este tipo de profissão sem ter muita escolaridade ou formação, mas sempre com uma filosofia de vida muito gira, que nos incutiu, baseada no trabalho, no foco, na persistência e na determinação. A minha mãe trabalhava nos CTT. Dentro das Artes, o meu pai queria que eu fosse para Arquitetura – porque era bom a Geometria -, ou para Design. Mas eu queria Belas-Artes e foi o que tirei. A minha mãe conhecia um senhor que dava aulas de pintura, então comecei a aprender técnicas de pintura com ele. Quando cheguei às Belas-Artes, na Faculdade de Belas-Artes no Chiado, abriu-se um mundo.

(Fotografia: DR)

O que guarda dessa fase?
A faculdade tinha um ambiente incrível, com muitas pessoas da rádio, cinema e televisão a passar por lá. Era um ambiente super alternativo e criativo. A coisa mais gira é que todas as obras de alunos que não eram aceites, ou eram censuradas por professores nas exposições finais de curso, eram apresentadas nas festas da faculdade. Os primeiros anos foram fascinantes para mim. Estava no sítio certo. Para mim não eram aulas. Quando apanhava trânsito de manhã a chegar a Carcavelos, ia apanhar umas ondas e às 10h é que ia para as aulas. A partir do terceiro ano, comecei a interessar-me por fazer Erasmus, então foquei-me mais. O meu curso foi de cinco anos e no quarto ano acabei por ir para Atenas, na Grécia, a minha primeira opção. Fui sozinho e foi uma experiência incrível. Fiz lá cadeiras práticas. Aprendi mosaico e gravura com ajuda de maquinarias, vitral também. Vivi num bairro muito giro no centro de Atenas, e mais tarde uns meses na ilha de Mikonos. Foi quando aproveitei para tirar uns fins de semana nas ilhas. Cresci muito a nível pessoal, porque às tantas fiquei sem dinheiro e tive de arranjar um trabalho na praia para me conseguir sustentar.

E o que se seguiu?
Voltei para Lisboa, terminei o curso e comecei a trabalhar numa loja no Chiado, numa espécie de galeria aberta, onde pintava, expunha e vendia peças minhas e de outros artistas. Só que nessa altura já tinha um filho e o trabalho não me estava a ser compensatório. Viver exclusivamente da arte em Portugal é muito difícil. Então, na altura tinha uma namorada que era diretora de Marketing da Google e estava em Telavive, Israel. Desafiou-me a ir ter com ela e quando entrei nos escritórios da Google adorei o que vi e decidi tirar um curso de webdesign. O problema foi quando entrei na parte de código e programação. Aí percebi que aquele curso não era para mim [risos].

(Fotografia: DR)

 

Foi então que decidiu apostar no curso de Cozinha?
Sim. Uma vez que o design não tinha funcionado, uma data de amigos meus viraram-se para mim e incentivaram-me a tirar um curso de Cozinha. Alguns deles até iam apanhar percebes, peixe, e levavam-me gambas e bifes para eu cozinhar em minha casa. O facto de em criança e adolescente também ter tido contacto com muitos produtos típicos, com que os chefs trabalham – como as molejas (um tipo de glândula do porco) – também me ajudou. Uma vez, na escola de hotelaria, levei um produto da Beira Baixa que se chama maranhos (um bucho do estômago de cabra recheado com arroz, hortelã e carne de cabrito e cozido em caldo de hortelã, super intenso) e isso suscitou muita curiosidade nos meus colegas. Tirei então o curso de Gestão e Produção de Cozinha na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril. Depois fui estagiar para a Fortaleza do Guincho com o Miguel Rocha Vieira, porque queria aprender a trabalhar com mariscos, carnes maturadas e peixes de muita qualidade. Estagiei lá um verão inteiro. Ia apanhar algas e funcho do mar enquanto os meus amigos me acenavam da praia. Sabia que o fine dining implicava técnica, disciplina, longas horas de trabalho e foco, por isso quis saber logo o que me ia custar. Quando saí da Fortaleza do Guincho fui para o Atlântico, no InterContinental Cascais-Estoril, onde encontrei uma cozinha unida e um ambiente mais familiar. Estava a criar este projeto de família e a absorver tudo para aplicar aqui. Sempre quis ter um turismo rural. Foi uma sorte termos encontrado este espaço, aqui em Mourão, no Alqueva, para construir o nosso hotel.

É o chef do Lua Cheia. Que tipo de trabalho desenvolve aqui?
Quando me meti na Cozinha, paixão que tive desde sempre, fui buscar muitas noções de artes. É aí que tudo me faz sentido. As cores, os sabores. O nosso cérebro funciona por estímulos e isto coloca-nos a questão “O que é que faz sentido na nossa cabeça?”. As Belas-Artes deram-me isto. Os quadros dão-nos estímulos. É como se o prato fosse uma tela em branco, onde posso empratar um prato com um “splash” de tinta de choco e adicionar cores vivas, amarelos, vermelhos. Estas loiças que comprámos para o restaurante, da coleção Amazónia, da Vista Alegre, têm uma certa ligação com a natureza envolvente. Mas se tiverem demasiada informação, já vão contra aquilo que quero fazer. Para este tipo de abordagem ao prato, um fundo mais “clean” funciona melhor. Mas faça o que fizer, serei sempre artista.

 

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Mapa da ficha ténica
Morada
Rua de S. Sebastião, Mourão (Alqueva), Alentejo
Telefone
266247900
Horário
Restaurante, das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h.
Custo
(€€) Quarto duplo a partir de 160 euros/noite (com pequeno-almoço). Preço médio restaurante à carta, sem bebidas: 45 euros.


GPS
Latitude : 39.3999
Longitude : -8.2245




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