O Requiem inevitável

Maria de Lourdes Modesto. (Fotografia de Paulo Spranger/GI)
Nada será como dantes no universo gastronómico, mediático e culinário. Deixou-nos definitivamente Maria de Lourdes Modesto, com um legado sentimental e patrimonial a que todos os portugueses estarão para sempre gratos.

A RTP começou a emitir em 1957 e um ano depois, em 1958 quis o acaso que se fizesse uma reportagem no Liceu Francês sobre uma peça de teatro de Molière. A direcção de programas reparou na elegante e bela Maria de Lourdes, professora de trabalhos manuais e que como outras pessoas e professores fazia parte do elenco da dita peça. Foi imediatamente convidada para fazer um programa cultural que declinou, lançando o repto da criação de um outro, orientado para as mulheres. Foi imediatamente aceite. Logo no início Maria de Lourdes mostrou um à-vontade enorme com a câmara e com os directos. No programa inaugural o tema era flores e para pasmo de todos, a nossa heroína decidiu ensinar a cozinhar e comer alcachofras. Nascia uma estrela para nunca mais se apagar. Ao longo de doze anos, o seu programa foi o único a igualar em audiências o TV Rural, de Sousa Veloso. Fervilhava de ideias, tinha sempre novos programas em mente e conviveu com os melhores profissionais, que depressa a aclamaram abrindo todas as portas. Nessa altura os chefs de cozinha não iam à televisão, nem tão-pouco à sala dos restaurantes onde oficiavam. A telúrica Maria de Lourdes levou o grande chef João Ribeiro – a quem sempre chamou Mestre -, nos tempos de ouro em que oficiou como chef do mítico Hotel Aviz, em Lisboa. Tornava tudo fácil no estúdio, recebendo como em sua própria casa e houve sempre cenas hilariantes que a inelutável vocação cénica da nossa diva tornou inesquecíveis.

Todos os muitos momentos que passei ao lado da querida Maria de Lourdes Modesto tiveram esse gostinho de eternidade para mim, simples escriba e seu admirador que sempre fui. Aquando do lançamento de um livro seu, em 2014, aproximei-me para a entrevistar e fui surpreendido com a sua resposta: “Claro que sim, mas o Fernando vai para a cozinha comigo”. Comecei por achar que estava a brincar, até porque sabia do recatamento da Maria de Lourdes quanto a registos dos momentos em que cozinhava; eram muito raros. De repente, acendeu-se a sua centelha com a intensidade de sempre e fomos ambos para cozinha fazer Fatias da China. Conversámos muito, rimos muito, sem dar sequer por estar a ser filmados. Fiz a pergunta sacramental sobre quando veríamos uma Escola Maria de Lourdes Modesto a funcionar, e a alentejana de Beja nascida a 1 de Junho de 1930 não respondeu mas o brilho nos seus olhos aumentou. Hoje, 19 de Julho de 2022, é um dia que transcende todo o lamento, a Maria de Lourdes que todos amamos é inteiramente livre e convive já com os sábios e mestres que tanto ajudou a brilhar.




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