Música: estes 8 álbuns são um alimento para a alma em dias de isolamento

A prerrogativa não exige muita ciência. Con.fi.na.men.to. Muito tempo, demasiado, em casa. Só. Com ela/e. Filhos, pais, avós, tios, a árvore genealógica. Amigos/as. Solidão. Muita gente. Há um dia para enfrentar. Horas para encarar. Música. Banda sonora para zangas, abraços, redescobertas, apaziguamentos. Desespero e alegria. Existe um disco para todos os momentos e um momento para todos os discos.

Saltar da cama e acreditar que tudo vai ser melhor

The BooRadleys
“Wake up!”
1995

Não há como a pop inglesa para fazer-nos levantar da cama e crer que o dia de hoje é melhor do que o de ontem e pior do que o de amanhã. “Wake up it’s a beautiful morning”, escuta-se logo na primeira canção. Seguem-se onze outras, de humores diversos, como a vida, afinal. Martin Carr estudou os Beatles e atualizou-os com um quarto de século de memória estética. Aproveite as melodias e salte da cama com a garantia de que a energia acumulada vai ser de enorme utilidade para controlar as crianças, impedir a cara metade de levar avante a ameaça de dedicar-se à bricolage ou cortar o acesso à porta da rua por parte do pai, para quem guerra mesmo foi a do Ultramar. A mãe concorda e já está de casaco vestido…

 

Um ogre para dominar as manhãs dos miúdos

Vários
“Shrek”
2001

Um paradigma do cinema de animação. Os mais pequenos adoram e os menos baixos derretem-se com o humor, realmente, fino. Mas tudo tem um fim. E, é uma certeza, eles vão levantar-se, os mais novos, e é a selva. Para atenuar o choque, prolongue o estado de graça (de Shrek e o seu) com nova dose. Não as dos filmes ulteriores, mas com a banda-sonora do primeiro. Os miúdos não resistem a “I’m a believer”, pelos Smash Mouth (finalmente, úteis à sociedade); “Bad reputation”, de Joan Jett, ou “I’m on my way”, dos Proclaimers. Ainda há mais. É deixá-los colocar o leitor de CD no modo “shuffle”. O burro também canta. E, parecendo que não, acabou por sobreviver até ao almoço.

 

Melodias que amolecem tardes familiares

Vitorino
“As mais bonitas”
1993

O disco do consenso. O estômago está composto, miudagem mortiça. As canções mais belas de Vitorino embalam uma espécie de serenidade. “Menina estás à janela” (agora, é quase só o que resta, não é?) abre um cortejo de 20 temas que, recorrendo a fontes tradicionais e à releitura delas, exaltam uma portugalidade que a voz do cantor alentejano sublinha e exalta. “Joana Rosa”, “Leitaria Garrett”, “Ó rama, ó que linda rama”, “Laurinda”… Temas que reconciliam gerações e potenciam a (re)descoberta de um percurso que já deixou mais de 15 álbuns. Em tempo de confinamento, Vitorino até pode juntar uns quaisquer adolescentes à beira de um ataque de nervos aos muitos fãs de sempre.

 

Os donos do mundo não podem sair de casa

Mike Ladd
“Nostalgialator”
2004

Pois, os adolescentes. E os estudantes universitários. E os recém-licenciados. Vivem nas redes sociais, mas preferem olhar para os ecrãs junto uns dos outros. Todavia, não pode ser. E a pancada é dura. Tão forte como escutar “Nostalgialator”, do norte-americano Mike Ladd. Hip-hop denso como os tempos que estamos a aguentar. Agreste, quase sem dar espaço à respiração. “Dire Straits play Nuremberg”, “Trouble shot”, “Off to Mars”, “Earn to fall”. A vida não está fácil. A tarde está lá fora. A música como catarse. Inquietação e raiva acumulam, acumulam, acumulam. O disco termina. “O gajo também não está lá muito bem.” Tudo somado, é de nostalgia que se trata. De um tempo de há semanas.

 

Rock de sobrevivência e superação

Iggy Pop
“Lust for life”
1977

A meia-idade e o meio da tarde. Dirija-se à prateleira. Letra “I”, de Iggy. O segundo álbum. “Lust for life”; em tradução livre, “gosto pela vida”. Vinil preto, preto. Gira-discos. “Well, I’m just a modern guy / Of course, I’ve had it in the ear before / ‘Cause of a lust for life / ‘Cause of a lust for life”. Rock sem rédeas. O antigo vocalista dos norte-americanos The Stooges tinha saído do inferno com o álbum inaugural da carreira a solo, “The idiot”, e continuava a olhar para o céu, ainda que com os pés pesadamente assentes na diversão. Corra pela casa, esbraceje, pontapeie o ar (ele que agora anda perigoso). “The passenger”, “Tonight”, “Success”, “Neighborhood threat”, “Fall in love with me”. Suor, respiração ofegante. O contexto é seu.

 

Em memória de todos aqueles invernos

Amália
“Com que voz”
1970

Não é o DISCO de Amália, mas será, porventura, o que mais bem concilia a austeridade do fado com a leveza da canção. É o LP para fim de tarde de quem se lembra da fadista no auge. Num sofá com vista para tudo e para nada, começa-se por escutar “Naufrágio” e permite-se aos olhos fechar. Depois, é deixar o álbum correr, esvair-se com a luz de mais um dia que passou demasiado devagar. Apesar de tudo, em casa. Mais do que nunca, refúgio. Se uma lágrima vier ver o que se passa, isso é fado. Bem, já chega de fatalidade. “Com que voz” também é luz. “Formiga bossa nova” e “Havemos de ir a Viana”. Ao Minho e a todos os lugares do Mundo e do quarteirão. “O jantar está quase pronto.” O sofá não vai a lado nenhum.

 

A noite é para dançar. Admite-se pijamas

Pet Shop Boys
“Actually”
1987

Saia para dançar. Deixe a cozinha e/ou o quarto e vá para a sala. Os ingleses Pet Shop Boys já lá estão. Uma noite na “discoteca” para espantar espíritos. Pop eletrónica com letras para pensar, se a inclinação der para aí. Se não for esse o caso, também não faz mal. Há uma canção intitulada “What have I done to deserve this?” (“o que é que fiz para merecer isto?”), com voz de Dusty Springfield, para bailar até ao fim dos tempos. No caso, até que o novo coronavírus desista. E, depois, continua-se a dançar. “It’s a sin”, “Heart”. O corpo precisa de estímulos, mais do que nunca. “Dance, dance, dance, dance, dance, to the radio”, cantavam os Joy Division. Substitua a rádio por “Actually” e “your ass will follow”.

 

Madrugadas de sauves enlevos

Steven Brown & Delphine Seyrig
“De doute et de grâce”
1990

É tarde. Muito. Diga-lhe para vir para a sua beira. Amor em tempos de cólera, escreveu o autor colombiano Gabriel García Márquez. “De doute et de grâce”, propõem o fundador dos norte-americanos Tuxedomoon e Delphine Seyrig, atriz francesa nascida em Beirute, no Líbano. As palavras fluem com o rio da música. O tempo suspenso. A voz dela e o firmamento sónico de Steven Brown são enlevo, bálsamo. O Mundo jamais será o mesmo. Durante cerca de 40 minutos. Ainda assim, para já, “amanhã é sempre longe demais” (cortesia dos Rádio Macau). “A propos d’un film”, “L’arrivée dans le jour”, “Palais écailles”, “Comme des fruits soyeux”. Depois, o silêncio. Dúvida em estado de (des)graça.




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