Guadiana: pela margem do grande rio do sul

Com pressas, o caminho faz-se num instante pela estrada nova. Mas a pressa é inimiga da evasão: é pelo traçado sinuoso da velha EN122 e da EM502 que se toma pulso ao Guadiana e à vida que o rodeia. Em querendo, leva-se um dia inteiro de Vila Real de Santo António a Alcoutim – e, no final, dá-se o dia como ganho.
No restaurante da Associação Naval almoça-se com os olhos no rio - e com vontade de mergulhar diretamente da mesa. (Filipe Amorim/GI)

Na Associação Naval almoça-se com os olhos no rio. (Filipe Amorim/GI)

À primeira vista, em dia de maré cheia, tem cara de mar. Qualquer imagem desenquadrada engana facilmente, pela cor azul forte, pela pacatez das águas, pela amplitude. O Guadiana termina a sua viagem de mais de oitocentos quilómetros diante de VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO, convertido num rio aprazível para embarcações de recreio, esplanadas ribeirinhas e pescadores de fim de semana.

Pesca «a sério» também a há, basta reparar na lota ao topo da avenida marginal, por sinal a mais movimentada do Algarve. Não será à conta do peixe de rio, é certo, ainda assim por lá passa algum do pescado retirado destas águas doces temperadas a sal.

Para conhecê-lo de perto – no prato, leia-se – nem é preciso subir toda a Avenida da República. Basta ficar a meio caminho, a jusante do Porto de Recreio, e tomar um lugar à mesa da Associação Naval do Guadiana. De preferência, na esplanada, de vista desimpedida sobre este rio onde apetece mergulhar.

O peixe do estuário do Guadiana é presença assídua no restaurante da Associação Naval. (Filipe Amorim/GI)

O peixe do estuário do Guadiana é presença assídua à mesa da Associação Naval. (Filipe Amorim/GI)

O atum domina a ementa, afinal ele é rei por estas paragens, a par de cataplanas e arrozes marítimos, mas há um cantinho dedicado àquilo que o rio dá.

Corvinas e douradas são passantes frequentes por este estuário (e pelo mostruário de peixes à entrada do restaurante), onde há também robalos, de cor dourada, escama mais miúda, sabor e consistência que em nada fica atrás dos espécimes de águas mais fundas.

Em Vila Real de Santo António, apresenta-se um Guadiana com car de mar. (Filipe Amorim/GI)

Em Vila Real de Santo António, apresenta-se um Guadiana com cara de mar. (Filipe Amorim/GI)

Pela linha da água, sempre para sul, pelo dorso do pontão que leva ao extremo sudeste de Portugal, chega-se ao Atlântico, e à praia de Santo António, que ostenta o carimbo Bandeira Azul. No entanto, o caminho faz-se para cima, para montante, onde há outros mergulhos a dar, com salinidades distintas.

O primeiro fica a três quilómetros de Vila Real, já na Reserva Natural do Sapal de Castro Marim. Aqui, a água está carregada de sal, ao ponto de se conseguir flutuar sem esforço, tal como se estivéssemos no Mar Morto. «Uma concentração de 240 gramas por litro», explica Pedro Rosa, quarta geração de uma família de produtores de sal.

À esquerda o Guadiana, à direita o mar. Pelo molhe da barra se chega ao extremo sudeste do país. (Filipe Amorim/GI)

À esquerda o Guadiana, à direita o mar. Rio abaixo, pelo molhe da barra se atinge o extremo sudeste de Portugal. (Filipe Amorim/GI)

Há cinco verões, Pedro, a sua irmã Gina e o cunhado Luís Horta Correia decidiram transformar um dos talhos da Salina Barquinha num spa natural a que chamaram Água Mãe. Além da piscina de flutuação com água a rondar os 25 graus – que, assegura Gina, «no verão chega aos 35» – aquecida pela ação solar, criaram também um espaço para massagens e um pacato bar com pufes e espreguiçadeiras que sabe a oásis quando aqui se vem dar ao acaso. Ali vendem também a flor de sal de produção própria Ao Sal – a gama inclui versões com aromáticas e outra com malagueta – e fazem visitas ao jeito de centro interpretativo da safra do sal.

O Guadiana, esse corre ali ao lado, para lá do imenso mosaico geométrico das salinas, do qual se tem uma noção mais abrangente no ponto de vista privilegiado que é o castelo de CASTRO MARIM. De caminho, dentro de muralhas, na antiga igreja de Santa Maria, aprende-se sobre o passado da vila algarvia nos tempos em que se chamava Baesuris e era o grande porto da região, com ligações comerciais às praças mediterrânicas. E o Guadiana a porta de entrada.

No spa salino Água Mãe, em Castro Marim, flutua-se em água a 25 graus. (Filipe Amorim/GI)

No spa salino Água Mãe, em Castro Marim, flutua-se em água a 25 graus. (Filipe Amorim/GI)

Para norte, toma-se a EN122 – sem virar para a ponte internacional, que agora serve de porta do Algarve a quem vem do lado da Andaluzia – para perder temporariamente o rio de vista. Por um bom motivo, note-se.

A ribeira de ODELEITE é um dos últimos tributários do grande rio do sul ibérico antes da sua chegada ao Atlântico. Como curso de água não é particularmente impressionante, mas vale a pena espreitar a albufeira à qual empresta o nome. O tom azul-celeste das águas da barragem de Odeleite é, para dizer pouco, inesperado. Para admirá-lo como deve ser, há um miradouro bem situado numa curva à saída da aldeia de Odeleite. No caso de se impor a vontade de dar um mergulho, há bom remédio a quilómetro e meio de distância, pela estrada de terra que parte do miradouro – não é propriamente uma praia, mas há uma rampa onde dá para deixar o carro e entrar sem grandes dificuldades nestas águas límpidas. Calhando que se queira explorar a albufeira, também se apresenta uma boa solução.

Os passeios de canoa da Algarve Selvagem dão a conhecer os recantos da barragem de Odeleite. (Filipe Amorim/GI)

Remando com a Algarve Selvagem se descobre os recantos da barragem de Odeleite. (Filipe Amorim/GI)

Paulo Martins conhece bem estas águas, como as de vários outros rios, ribeiras e barragens de Algarve e Alentejo – para não falar do mundo por onde velejou, antes de ter decidido largar âncora na terra que o viu nascer. A partir de Portimão, opera a Algarve Selvagem, empresa de turismo ativo apostada nas caminhadas, nos passeios de caiaque e em dar a descobrir recantos surpreendentes do sul do país (mas também dos Açores, Cabo Verde, Bijagós). E remar – perdão, pagaiar – pelas águas de Odeleite faz parte de uma das aventuras que organiza pelos territórios do Guadiana, que podem incluir slide, trekking e almoço. «Mas sem pressas ou grandes tiradas, é para passear, não é para cumprir distância», faz questão de vincar. «O importante é tirar prazer disto.» Não é difícil.

O ensopado de enguias é pretexto para uma paragem – na Cantarinha ou no Arcos do Guadiana. (Gonçalo Villaverde/GI)

Vale a pena parar no Arcos ou na Cantarinha com o sentido no ensopado de enguias. (Gonçalo Villaverde/GI)

É no ponto de encontro da ribeira com o rio, outro dos spots que a Algarve Selvagem dá a conhecer, que se retoma o contacto com o Guadiana. Em FOZ DE ODELEITE, a estrada (EM507) passa a acompanhar o traçado sinuoso do rio, uma bonita marginal selvagem a ligar aldeias ribeirinhas umas atrás das outras. Quem vai com tempo – para pressas, há o IC27 no cimo da serra, com belas vistas mas sem este rio à mão – vai parando, aproveitando, saboreando cada local.

Se a barriga já pedir alimento, há bom remédio no Arcos do Guadiana. Cozido de grão, galinha de cabidela, peixe para grelhar, por exemplo. Ou, para não fugir ao assunto fluvial, enguias. Fritas ou num substancial ensopado que nos deixa de bem com o mundo.

Dentro do mesmo registo familiar, e também com as enguias e a comida serrana por pretexto, escala alternativa meia dúzia de quilómetros adiante: chama-se Cantarinha do Guadiana e fica em LARANJEIRAS.

De permeio, GUERREIROS DO RIO, onde se pode encostar para visitar o pequeno (mas cheio de histórias) Museu do Rio e/ou para sentar, tomar um copo, petiscar, ver passar veleiros na convidativa esplanada do Bar do Rio, junto ao ancoradouro.

Alcoutim não fica longe, e até lá ainda é recomendável uma última paragem, quando o rio e a estrada, uma vez mais separados, se voltam a juntar. Nesta derradeira curva apertada, já se ganhou altitude, e a vista impõe-se de outra forma – de repente, o Guadiana faz lembrar um pequeno Douro, porém banhado pelo dourado da luz algarvia.

Do slide transfronteiriço Sanlúcar-Alcoutim tem-se a melhor de todas as vistas sobre o Guadiana. (Gonçalo Villaverde/GI)

Do slide transfronteiriço tem-se a melhor de todas as vistas sobre o Guadiana. (Gonçalo Villaverde/GI)

A pequena vila de ALCOUTIM ficou para o final. Porque a vista sobre a Sanlúcar, do lado espanhol, é preciosa no fim do dia. Porque a essa hora ainda está a funcionar aquela que se apresenta como a única linha de slide transfronteiriça do mundo – cruza-se o rio de barco, regressa-se a deslizar por um cabo de aço e com as melhores vistas de todo o Guadiana. E porque ainda dá tempo para um mergulho que estava prometido desde o início da viagem, na praia fluvial do Pego Fundo, onde não falta sombra (portanto, qualquer hora pode ser boa), areia branca para estender a toalha e um barzinho com esplanada.

Areia branca, sombra com fartura, água quente: não falta nada à praia do Pego Fundo, em Alcoutim. (Filipe Amorim/GI)

Areia branca, sombra com fartura, água quente: não falta nada à praia do Pego Fundo, em Alcoutim. (Filipe Amorim/GI)

Alcoutim fica para o final porque a viagem não tem de acabar aqui: há muito rio para cima, Alentejo adentro, Espanha adentro. Haja vontade e segue-se caminho, daí a foz ser o ponto de partida. O Guadiana é como uma revista que se começa a folhear pela última página.

 

 

~~ENTREVISTA~~

ANTÓNIO GOMES
O ARTESÃO QUE TRABALHA AQUILO QUE O RIO DÁ
74 anos, Furnazinhas (Castro Marim)

(Filipe Amorim/GI)

Com que materiais do rio trabalha?
Com junça, taboa e buinho. São todos diferentes: o buinho é redondo, a junça é triangular e a taboa é assim meia-cana.

Onde os apanha?
Nos rios, nos ribeiros, barrancos. Onde houver fontes de água. Onde não houver água não há isto. Na ribeira da Foupana, tive de entrar na água pela cintura. A taboa boa estava lá no meio.

Qual é a boa taboa?
É a que ainda não tem aquele espigo, que parece uma carambola comprida. Essa é muito gorda, não é boa. A que não tem o espigo é mais fininha.

Quanto tempo de secagem é necessário até estar boa para trabalhar?
Um mês ao sol, mais ou menos. Para comer a cor do verde.

Apanha durante todo o ano?
Não, só durante este mês [junho]. Antes está muito tenra, depois está muito dura, parte mais. Com a junça e o buinho é igual. É tudo apanhado na mesma época.

E para que serve cada um?
Para o empalhamento de cadeiras. Às vezes a gente põe um [fio] de um, outro de outro.

Quando começou a fazer isto?
Desde pequeno, sou filho de artesãos. Tinha para aí 10, 11 anos.

Para ajudar o seu pai?
Para sobrevivência, o meu pai morreu era eu pequenino. E isto nasce logo com a gente, víamos as outras pessoas a fazer. Quase toda a gente fazia, uns para vender, outros para gasto de casa. Não havia baldes de plástico para apanhar os frutos. E fazia-se também aquelas canastinhas com que tiravam o peixe dos barcos. Eu mais um moço chegámos a fazer 24 numa noite. Vendíamos a 10 tostões cada uma.

Este ofício era mais bem pago do que trabalhar no campo?
Os ofícios, sim, mas o carpinteiro, o sapateiro, essas coisas assim. A cestaria… esses, coitados, a roupa era sempre muito friorenta. Leva muito tempo a preparar a cana. Gasto meio dia ou um dia a fazer um cesto. A gente pede 20 euros e acham caro. Não paga o trabalho. A gente tem de ter gosto, se não tiver não sai nada.

As canas também são apanhadas nas ribeiras?
Também. Agora não é a melhor época. É melhor no outono, a partir de agosto, setembro, por aí fora até dezembro.

Para perder a água?
Sim, já não lhe dá o bicho. Todo o material tem um inimigo. Se não for colhido na época boa…

Isto foi a sua profissão a vida toda?
Não, fui carpinteiro, trabalhei na barragem, com máquinas agrícolas, na agricultura – apanhar amêndoa, frutos. Depois de reformado é que comecei a fazer estas coisas. É mais para estar entretido. Já reformado, o que é que uma pessoa vai fazer? Estar aí olhando para a televisão? Assim a gente está entretido, quando vou a ver já é meio-dia.

 

~~expedição~~
SUBIR O GUADIANA DE VELEIRO
A Algarve Cruising Center organiza uma expedição Guadiana acima, a partir de Olhão, a bordo de um veleiro Beneteau Oceanis 40 de 12 metros, com três cabines, cozinha equipada e sala de estar.
A viagem dura seis dias, com escala em diversos ancoradouros e pontos de interesse (nomeadamente, sítios para comer), guiada pelo skipper Ricardo Barradas – que, pelo caminho, vai explica a quem quiser aprender e participar, as manobras da lide da embarcação.

Preço: 750 euros/ pessoa, em cabine dupla, incluindo 5 noites, 5 almoços, 2 jantares. Não inclui pequeno-almoço nem bebidas alcoólicas.
Tel.: 912263263

 

MERGULHAR
Praia de Santo António
Praia de mar, junto à foz do Guadiana (Bandeira Azul)
Vila Real de Santo António
GPS: 37.1745, -7.4213

Água Mãe
Spa salino com tanque de flutuação e massagens
EN122, Castro Marim
GPS: 37.2139, -7.436
Tel.: 965404888
Das 09h00 às 20h00
Preços: 6/12 euros (só banho/banho e aplicação de argila salina), visitas guiadas desde 6 euros

Barragem de Odeleite
Albufeira sem praia, com pontos acessíveis
Odeleite (Castro Marim)
GPS: 37.3372, -7.5081

Praia do Pego Fundo
Praia fluvial vigiada com bar, sombras, estacionamento e zona de piqueniques
Ribeira de Cadavais, Alcoutim
GPS: 37.472, -7.4767

EXPLORAR
Algarve Selvagem
Passeios pedestres guiados com canoagem, criados à medida
Tel.: 939319975
Preço sob consulta (a partir de 25 euros por pessoa)

Limite Zero
Descida de slide Sanlúcar-Alcoutim. Travessia por ferry a partir de Alcoutim.
Cais de Sanlúcar de Guadiana (Espanha)
Tel.: (+34) 670313933
Saltos das 09h00 às 17h40
Preço: 20 euros

MIRAR
Miradouro de Odeleite
EN122, Odeleite (Castro Marim)
GPS: 37.3355, -7.4975

Miradouro do Guadiana
EM507, entre Laranjeiras e Alcoutim
GPS: 37.4233, -7.4556

COMER
Associação Naval do Guadiana
Avenida da República, Vila Real de Santo António
Tel.: 281513038
Encerra à terça.
Preço médio: 30 euros

Arcos do Guadiana
Foz de Odeleite (Castro Marim)
Tel.: 281495068
Encerra à segunda.
Preço médio: 15 euros

Cantarinha do Guadiana
Guerreiros do Rio (Alcoutim)
Tel.: 281547196
Encerra à quarta e ao jantar de domingo.
Preço médio: 20 euros

FICAR
Grand House
Hotel histórico de cinco estrelas, fundado em 1926 e recuperado em 2019. Com vista para o rio.
Avenida da República, 171, Vila Real de Santo António
Tel.: 281530290
Quarto duplo a partir de 200 euros por noite

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