Estes discos são ilhas de felicidade em tempos de nova reclusão

Fotografia: Pexels/DR
Eis-nos de volta a março de 2020. De regresso à imagem de um ano que não sabemos se queremos esquecer se recordar: o confinamento. Ainda assim, num ato aparentemente masoquista, procure-se entre as trevas do ano passado a luz para atenuar a dor de uma alma já demasiado dorida - “tip of the hat” para os Ban. Conforto garantido nos discos que se seguem.

Aksak Maboul, “Figures”
Quarenta anos é muito tempo e, no entanto…

Quatro décadas. É quanto dista “Figures” do álbum anterior, “Un peu de l’âme des bandits”. Os belgas produzem pouco, é uma constatação justa. Mas quando se dão a esse trabalho, é o delírio. Para eles, provavelmente, e para os fãs. E o substantivo também não fica nada mal aplicado ao conteúdo do terceiro LP do projeto de Marc Hollander – fundador da editora Crammed Discs, que, em 1977, iniciou as hostilidades Aksak Maboul com “Onze danses pour combattre la migraine” -, tal a profusão de estilos que o duplo disco atira a quem tem a sorte de escutá-lo. Rock, jazz, experimentalismos vários, pop, música concreta, folk… Tudo cabe no caldeirão. Fred Frith e Steven Brown abrilhantam a jóia.

 

Da Chick, “Conversations with the beat”
Nove lições de groove em registo lúdico

Teresa de Sousa é uma lusitana bem disposta. Com um talento que promete mais e melhor. Para já, “Conversations with the beat” é um excelente passo num percurso que compreende um álbum, “Chick to chick”, e alguns singles. A palavra a reter é “groove”, ao redor do qual tudo se cria e transforma, sejam eles farrapos de soul, hip hop, funk, pop ou ambient music. Em simultâneo, atmosférica e corporal, a música de Da Chick é perigosa porque viciante, apetece abraçá-la (a cada uma das faixas, não a Teresa). “Sente”, “Do your thang”, “Mustang” e “Less is more”: quatro exemplos entre nove de como é possível promover o sincretismo sem abdicar de uma ideia clara sobre o caminho a seguir. Disco lúdico do ano.

 

Fiona Apple, “Fetch the bolt cutters”
Canções rebeldes para espantar o torpor

Ao quinto álbum e aos 43 anos, a maturidade. Sem acomodamento. Numa espécie de encontro entre Laura Nyro e o Tom Waits pós-”Swordfishtrombones”, a norte-americana faz de “Fetch the bolt cutters” um duplo LP apontado ao coração de quem gosta de narrativas obtusas, ainda que objetivas. Um emaranhado de pop, rock, folk e country – por vezes, numa mesma canção -, com certas liberdades comuns no jazz, o disco proporciona um desassossego benigno, mais do que nunca necessário para nos resgatar do torpor de dez meses de vida semi-suspensa. O tema-título, “Shameika” e “Relay”são balizas de pouco mais de 50 minutos de canções rebeldes. Escute-se repetidamente e sem pausas.

 

Irreversible Entanglements, “Who sent you”?
Inquietação envolta em palavras e free jazz

O quinteto norte-americano Irreversible Entanglements está zangado, com os Estados Unidos atuais e os de há décadas. Por tabela, o Mundo não escapa. Não será condição obrigatória e exclusiva da população negra (aliás, o grupo integra um branco), mas é a História da ausência da aplicação prática dos direitos civis que rege os procedimentos. Pelos quais só temos a agradecer. O segundo LP da banda é um choque de free jazz e de spoken word, com a poesia sustentada por uma densidade instrumental que em momento algum descamba para a intromissão. Em cinco temas apenas – entre os quatro e os 14 minutos -, “Who sent you?” levanta uma série de questões. Todas elas pertinentes.

 

Khruangbin, “Mordechai”
Banda sonora para o mar da tranquilidade

Com uma maior ênfase nas vocalizações do que nos dois registos de originais anteriores, o trio do Texas, Estados Unidos, criou a obra mais homogénea da sua discografia. Homogénea, não monolítica. Isto porque “Mordechai” congrega em dez temas, de forma harmoniosa, psicadelia, funk, rock, “easy listening”, soul, pop e dub. Com a liberdade intrínseca a quem faz do prazer de tocar condição inegociável para partilhar a música que faz com o resto do Mundo. Como bússola, escolha-se “Time (you and I)”, “Connaissais de face” e “So we won’t forget”, com a certeza de que nos aprestamos para entrar numa espécie de “Mar da tranquilidade”, numa época em que ela tanta falta faz. Um verão de 365 (ou 366) dias.

 

Rita Braga, “Time warp blues”
Pleno de subtilezas e de bizarrias

O gesto da portuguesa não é de agora, mas, ainda assim, continuar a puxar o ukulele para a frente de combate num disco pop continua a ser motivo de curiosidade. É o menor dos atributos do terceiro longa duração de Rita Braga, porquanto o que se desenrola em “Time warp blues” é um filme – refira-se que o cinema é outra área de interesse da artista – pleno de subtilezas, sejam elas estritamente sonoras ou semânticas. Aliás, os títulos de várias canções – “Tremble like a ghost”, “You used to be Stevie Wonder” (versão de um tema do norte-americano Peter Ivers), “Branca de Neve”, “Ectoplasma” ou “Sardine” – apenas adensam o clima de estranheza de um álbum disponível para uma descoberta lenta.

 

Sault, “Untitled (rise)”
Pouca informação, criatividade copiosa

Não primam por informação biográfica copiosa. Longe disso. Sabe-se que estão sediados no Reino Unido, que o produtor Inflo será o instigador das operações e que Cleo Sol e Michael Kiwanuka fornecem algumas das vozes. Porém, a exiguidade identitária tem contraponto no material sónico disponibilizado. Quatro álbuns em dois anos – ao que justifica este texto, juntam-se “5” e “7”, de 2019, e “Untitled (black is), também do ano passado – constroem uma teia espessa de neo soul, funk, afrobeat, jazz e, até, pós-punk e um toque de tropicalismo. “Untitled (rise)” surge, por enquanto, como o zénite de uma produção incansável. Será difícil ultrapassá-lo, mas a expectativa é um luxo de que não podemos abdicar.

 

The diabolical liberties, “High protection & the sportswear mystics”
Disco para todos os sentidos

Outro dos retornos do ano passado. Depois de espalhar música – alguma dela óptima – sob “disfarces” como Earl Zinger, Galliano e Two Banks Of Four, entre vários outros, o inglês Rob Gallagher propõe The Diabolical Liberties, na companhia de Alex Patchwork. E o que é dado a ouvir em “High protection & the sportswear mystics” é um passeio de prazeres diversos por paisagens esculpidas a eletrónica, dub, blues, hip hop, jazz e umas quantas reminiscências de “street art”. A este propósito, comece-se a audição do álbum pelo meio – faixa Sliders” – e navegue-se ao sabor de uma música que tanto enleia como sobressalta, sem, contudo, cair no gesto gratuito. Na essência, um disco desempoeirado.

 

Estudo

“89% das pessoas disseram que a música é essencial para a saúde e para o bem-estar”
– Academia Britânica de Terapia do Som




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