“O que eu mais gosto de fazer é isto”, diz João Xavier, pegando numa jarra de porcelana com uma paisagem idílica pintada à mão. Nos anos 1960 entrou para a equipa de pintores cerâmicos da já extinta fábrica de faianças Raul da Bernarda, a mais antiga fábrica de louça de Alcobaça, e o gosto entranhou-se e nunca mais saiu. Até mesmo depois de se juntar a mais dois sócios e fundar a Jomazé, também dedicada à produção de cerâmicas decorativas, em linha com as tendências internacionais. As exigências do mercado acabaram por ditar o declínio da louça pintada, em detrimento de peças mais contemporâneas, mas paralelamente ao negócio, João continua a pintar. Pinta para ele e para oferecer, e para não deixar perder a arte.
Outra forma de a recordar é fazendo uma visita ao Museu Raul da Bernarda, cuja coleção permanente, composta a partir do espólio da fábrica, documenta os mais de 140 anos de atividade da empresa, com dezenas de peças pintadas à mão, com motivos florais e vegetais, cenários campestres, temas marítimos e animais.
A riqueza cerâmica do concelho voltou por estes dias a estar nas bocas do mundo, a propósito do congresso. Por isso, reforçaram-se as exposições sobre a temática, e algumas já patentes foram alargadas. Só no Armazém das Artes há três mostras para conhecer. A galeria fundada pelo escultor José Aurélio dá palco à criação artística de 45 ceramistas de 26 países, cujo trabalho compõe a exposição “Cerâmica Mediterrânica e a sua Influência Global”, visitável até 30 de novembro.
No mesmo espaço, convive uma coleção que revisita a obra em cerâmica de José Aurélio, a que dedicou uma década do seu percurso artístico com mais de 60 anos, marcado essencialmente pela pedra, a madeira e o bronze. Está patente até março, tal como a exposição “45/24 Pratos da Guerra, Pratos de Paz”, que consiste na recriação de uma antiga iniciativa da Olaria de Alcobaça, que, nos anos 40, assinalava os avanços dos aliados na II Guerra Mundial nas suas louças. Nesta nova abordagem, artistas contemporâneos, entre os quais José Aurélio, Liliana Sousa e Sofia Areal, dialogam com as peças históricas, refletindo sobre temas universais como a guerra e a paz.
Falar da tradição da cerâmica em Alcobaça é também cruzar caminho com a história da monumental abadia em pedra branca em redor da qual se desenvolveu a cidade. Ainda Portugal não era reino, quando D. Afonso Henrique doou 40 mil hectares de terras conquistadas aos mouros à Ordem de Cister, que ali se instalou e iniciou a construção do imponente Mosteiro de Alcobaça, classificado pela Unesco como Património da Humanidade. Hoje, o monumento alberga no seu interior um hotel de cinco estrelas – o Montebelo Mosteiro de Alcobaça Historic Hotel – que veio reabilitar o decadente Claustro do Rachadouro, com obra do arquiteto Eduardo Souto Moura; paralelamente à àrea visitável, onde se integra a igreja. Ali, o Retábulo do Trânsito de São Bernardo, um conjunto escultórico com quase 400 anos, é um dos exemplos do fulgor que a escultura em terracota (barro cozido) ganhou dentro do mosteiro durante o período barroco e do legado deixado à cidade pelos monges barristas.
No transepto da igreja encontra-se outro conjunto de interesse: os túmulos de D. Pedro I e Inês de Castro, cuja história de amor trágica também se entrelaça com a cerâmica do concelho, tendo inspirado um circuito de esculturas em cerâmica dispostas no centro da cidade. O Percurso Camoniano é composto por 10 peças criadas por fábricas de Alcobaça, a partir da interpretação do episódio de Inês de Castro de Os Lusíadas e de um soneto de Miguel Torga.
No final do caminho, a proximidade justifica o desvio de temática para conhecer o recém-inaugurado Museu das Máquinas Falantes, e mergulhar numa viagem pela história do som, desde a década de 80 do século XIX, até ao ao século XXI, através do espólio do colecionador José Madeira Neves. “Ele era um amante da rádio e da tecnologia do som, porque trabalhou muito anos na Emissora Nacional e depois na RDP, e foi constituindo uma coleção, com mais de cinco mil objetos. Aqui temos expostos apenas mil”, informa Alberto Guerreiro, curador do museu. Fonógrafos, gramofones, caixas de música, discos de Berliner, rádios, telefones e muitos outros aparelhos – alguns dos quais se podem ouvir tocar – preenchem o belíssimo edifício revestido a azulejos.
Terminamos o passeio em frente ao mosteiro e com outra herança da Ordem de Cister, desta vez deixada pelas freiras da abadia de Cós, cujas receitas de doçaria conventual são reproduzidas pela pastelaria Alcôa desde 1957. As cornucópias, recheadas com doce de ovos e canela, coroam um conjunto de mais de uma dezena de outras variações, que têm as gemas, a amêndoa e o açúcar como ingredientes base. A regra da moderação impede que se provem todas de uma vez, dando mais um pretexto para regressar.
Museu Raul da Bernarda
Rua Frei Fortunato, Alcobaça
Quarta a sexta das 10h às 13h e das 14h às 17h. Sábados, domingos e feriados das 14h às 17h.
Entrada livre
Armazém das Artes
Rua Eng. Duarte Pacheco 38, Alcobaça
Quintas e sextas das 14h às 17h. Sábados, domingos e feriados das 10h às 12h30 e das 14h às 18h.
Mosteiro de Alcobaça
Praça 25 de Abril, Alcobaça
Todos os dias das 9h às 18h.
Entrada: 10 euros (Igreja de entrada livre)
Museu das Máquinas Falantes
Rua Araújo Guimarães, 28, Alcobaça
Terça a domingo das 10h às 13h e das 14h às 18h.
Entrada livre
Alcôa
Praça 25 de abril, 44, Alcobaça
Todos os dias das 8h30 às 19h30.