Crónica de Paula Ferreira: A arte de andar a pé

(Fotografia de Artur Machado/Global Imagens)
Caminhar será a melhor maneira de “olharmos para nós próprios, amarmos a Terra e permitirmos que o nosso corpo viaje à mesma velocidade da nossa alma”.

Dois amigos estão a fazer, em tempos diferentes, o caminho francês de Santiago. Um deles já percorreu, por outras jornadas, diferentes caminhos que, desde a Idade Média, levam milhares fiéis à Galiza por devoção ao apóstolo. Agora, aventurou-se numa grande rota, começa nos Pirenéus e só termina em Compostela. Por vezes pergunto-me: por que razão alguém percorre léguas e léguas, debaixo de sol ou de chuva, sem tomar esse gesto, ao contrário dos peregrinos, como penitência ou promessa acesa pela fé? E encontro sempre resposta. Nas minhas caminhadas (nunca fiz o Caminho de Santiago, apenas pequenos troços) embora raramente sozinha, sinto uma enorme leveza. Nessas alturas, sobretudo quando caminho solitária, surgem ideias, soluções para problemas que considerava insolúveis, desaparecem os pensamentos mais lúgubres – como se a brisa, de encontro ao rosto, tivesse a capacidade de limpar as imperfeições do mundo.

Não é preciso fazer grandes distâncias para usufruir dos benefícios de uma caminhada. À partida, é a nossa relação com o espaço que se torna única. Na cidade, sempre que o tempo (não o meteorológico, mas o outro) me permite, opto por andar a pé. O carro estacionado, o passe de metro na carteira. E, não raro, sou surpreendida, numa cidade que conheço há décadas, por motivos novos: uma livraria acabada de abrir contra a maré, uma jovem árvore plantada de fresco, gente com que me cruzo e não voltarei a ver, um gato a espreitar do alto do muro. Todavia, andar a pé na cidade está a tornar-se aventura plena de obstáculos: as esplanadas, desde os sítios mais inimagináveis, vão engolindo o espaço público, vedam sem pedir licença a marcha ao caminhante. Crescem as esplanadas, desaparecem os bancos de jardim, como aconteceu, recentemente, no Largo Alberto Pimentel, com os seus jacarandás, junto à Fonte das Oliveiras, no Porto. A cidade é para consumir, não é para contemplar.

Andar a pé encerra diversas virtudes, desde o combate à osteoporose, ao contributo para manter peso ou para o bem estar do coração. No entanto, o que mais me motiva ao andarilhar por ruas, montes e vales, é a leveza que proporciona à mente – assim, vejo o ato de caminhar como um agradável retiro espiritual em movimento, partilhado com a natureza.

No seu livro A Arte de Caminhar, o norueguês Eling Kagge, sintetiza esse ato, tão velho como a existência do ser humano: “andar a pé será a melhor maneira de “olharmos para nós próprios, amarmos a Terra e permitirmos que o nosso corpo viaje à mesma velocidade da nossa alma”…




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