Conhecer a Madeira a pé

O projeto era fazer a travessia da “Pérola do Atlântico” a pé, por trilhos que somam 85 km. Fizemos 85 km porque nos perdemos. O tempo e o recolher obrigatório travaram-nos perto do fim.

Se juntarmos no mesmo pacote os caprichos da meteorologia e as restrições de movimento impostas por uma pandemia, temos meio caminho andado para falhar um desafio. Não falhámos por meio caminho, mas por 20%: 18 quilómetros da travessia da Madeira a pé ficaram para a próxima viagem à “Pérola do Atlântico”.

Começamos esta história pelo fim porque, na verdade, fizemo-la ao contrário, por respeito à terminologia náutica da palavra “travessia”, já que estamos enfiados numa ilha rodeada de Atlântico por milhares de quilómetros. Ora travessia é “vento travessão”, que é “vento contrário à navegação”. Posto isto, fica desde já dito que a decisão atrapalhou-nos mesmo a navegação, obrigou-nos a descobrir insupostos caminhos e fez-nos perder não o norte, neste caso, mas o ocidente.

Ponta de São Lourenço (Fotografia: Ivete Carneiro)

 

A ideia foi seguir aproximadamente o trilho desenhado pelos idealizadores da prova de montanha Ultra Madeira, que liga o farol da Ponta do Pargo, no ocidental município da Calheta, ao Caniçal, última freguesia do oriental concelho do Machico. E é aqui que entra a covid-19: a Madeira estava sujeita a um recolher obrigatório a partir das 18 horas, o que significa que para lá dessa hora seria impossível encontrar vivalma na rua ou portas entreabertas. Seguir a rota em autonomia implica sempre parar onde o tempo começar a embirrar ou o corpo pedir para parar. A incerteza de poder pousá-lo num qualquer quarto da semicerrada ilha impôs a melhor decisão da viagem – instalar arraiais no fabuloso Porto da Cruz, freguesia da costa norte pertença do Machico, município viciado em trilhos que teve a amabilidade de nos apoiar na empreitada. Daí veio a ideia de ir contrários à navegação. E ainda somar uns pontos ao desafio, estendendo a linha de partida até ao fim do caminho: a árida e varrida Ponta de São Lourenço.

A ponta mais antiga

Não era desconhecida a ponta a quem João Gonçalves Zarco deixou o nome, inspirado no da nau que o levou ao descobrimento da Madeira (feito que o navegador partilha com Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo) – “Ó São Lourenço, chega!”. A zona, uma área protegida de 9 km integrada na Rede Natura 2000, tem um dos percursos pedestres (PR) mais fáceis da ilha e, portanto, dos mais procurados. Porque começar na Casa do Sardinha implicava apanhar um barco nada madrugador até ao cais com o mesmo nome, arrancámos onde acaba a estrada, em direção à ponta da ponta (mentira, essa é inacessível porquanto fica no Ilhéu de Fora, ou do Farol, que fica ele próprio para lá do Ilhéu do Desembarcadouro ou da Metade). Três quilómetros para trás para marcar o ponto zero. O Sol brinda-nos, encostando uma Madeira verde vibrante a um céu de bréu que nos traçou logo logo o destino: a travessia seria aos esses… Ao longe, a névoa disfarça, a norte, o Porto Santo, deixando o horizonte aberto para as Desertas, a sul.

Ponta de São Lourenço (Fotografia: Ivete Carneiro)

 

Chega a ficar calor, as camadas de proteção saem com camadas de cebola, à hora em que a alma pede o primeiro café, já mais de 10 km depois de pôr o pé a caminho, virou tudo. O Caniçal escureceu, o ar soprou, o trilho foi difícil de encontrar e demos por nós descer o Pico do Facho, sobranceiro ao Machico, no afã de tirar impermeáveis das mochilas a tempo de não ficarmos encharcados, nós e elas. O dia fez-se ali. Choveria a bom chover durante toda a Levada do Machico, choveria sobre os nossos ovos cozidos comidos a caminhar, como que a explicar-nos que estes desafios não se compadecem com pseudo-impermeáveis bonitinhos. Não. Era a sério, estava frio, toldou-se-nos a visão e o gps até sermos parados por um agricultor na sua faina. Íamos a caminho de Maroços, nada a ver com o mapa desenhado na mente, procurávamos o Larano para subir ao Poiso e parar os relógios.

A destilar tempestade por todos os poros, retornámos a um ponto de viragem e seguimos Larano acima, em direção à escuridão mais completa do céu. Numa curva do caminho, ficou tomada a segunda melhor decisão da viagem: escapar da chuva e virar o azimute para o Porto da Cruz, pela indizível vereda do Larano que dá continuidade à Boca do Risco e escrever isto nunca será fiel àquele trilho sulcado ao longo da íngreme (en)costa norte da Madeira, o Atlântico lá em baixo da vegetação que resvala, uma parede de pedra pelas costas e aquela sensação de estarmos definitiva e perigosamente longe da civilização.

 

Luís Fernandes, o anjo da guarda que nos acompanhou nas intempestivas mudanças de decisões, pronto a pôr-nos a carrinha à vista mal o cansaço dava sinal, haveria de nos contar que aquele era o trilho feito pelos homens do Machico porque era a forma mais rápida de ligar a vila ao Porto da Cruz e ao seu vinho americano. O precioso líquido era transportado num borracheiro, uma pele de cabra curtida e fechada de forma a transportar até 65 litros de vinho, encaixada às costas, vereda adiante, com alguém do grupo a soprar num búzio para manter os demais alertas.

Os trilhos da Madeira são muita da História que não se vê e que a prática de corrida de montanha ajudou a redescobrir. Outros mais famosos incluem as levadas que traziam água da serra para o sul mais seco, ou a ligação entre os maiores picos ou dali às funduras do Curral da Freiras, para ir de norte a sul pelo caminho mais curto. A ilha revela-se hoje trilhada como um bordado madeirense, com uma miríade de tracks disponíveis na Internet e este que seguimos agora já não é o da Ultra, mas sim o da prova de trail Porto da Cruz Natura, que nos põe em cima do presépio que é a vila, como se nos deixasse ali num drone. A voar escadas abaixo entre quintais e curvas até umas mais do que merecidas lapas grelhadas com bolo do caco com manteiga de alho no Pipa, esse segredo sem vista de mar numa terra virada a ele. A correr, porque faltava hora e meia para o recolher obrigatório e ainda a roupa interior estava fria da chuva que fez connosco parte dos cerca de 30 km do dia.

Do mar ao céu num dia
Acordar com o rolar das pedras negras moldadas pelas ondas e o dia a despontar no horizonte não exige despertador. Esta ilha, sobretudo deste lado, tem este condão inspirador, embala-nos na rebentação como que a hipnotizar-nos para que não pensemos no que nos espera: a consequência da decisão de ficar no Porto da Cruz. Porque dali é sempre a subir. Ao cabo de qualquer coisa como um quilómetro e já a mais de 200 metros de altitude, ainda o presépio se espraia pelas encostas, uma bifurcação indica a direção: Katrepa Bar. O Catrepa é Valter, que herdou o apelido do bisavô paterno, que se chamaria assim por trepar, não nos disseram exatamente o quê ou quem… O Katrepa tem dois segredos mais um: uma das melhores ponchas da Madeira – a par da da Sónia, na mercearia café em frente ao largo da igreja, ambas no Porto da Cruz, já dissemos que esta terra é admirável? -, um pé de cabra para nos pôr o sangue a ferver para a subida e as histórias que Teresa desfia enquanto mistura cacau com vinho tinto, cerveja preta e limão com o caralhinho (lamentamos, mas é assim que se chama, que ninguém a ele se refere como o mexelote que é). Sim, são menos de nove da manhã, mas pela janela vislumbra-se o destino: os picos acima dos 1800 metros.

 

Com o arrepio do pé de cabra na espinha, como se levássemos com ele pelas costas, seguimos o trilho de treino do Porto da Cruz (o Luís de há pouco foi um dos que desenhou o percurso de treino de trail que se faria prova pelos ditos caminhos de antanho e bem haja por isso, que hoje trilhamos tudo isso com a tranquilidade dos caminheiros), até quase à Portela sem lá ir, daí ao Poiso cenário de conto de fadas e mais uma vez a atravessar cortinas de nevoeiro entre árvores milenares, como num sonho, o frio a tomar-nos e, lá na curva da estrada, a descoberta do Abrigo do Poiso. A sério: estava a lareira acesa… Espetada, pois bem. E bolo do caco. E o aconchego do lume a marimbar-se para a humidade lá fora. Era um daqueles meios do caminho que sabiam a fim, foi preciso encher o peito para sair porta fora para o outro meio. E que meio. A subida ao Pico do Areeiro, gigante miradouro do alto dos seus 1817 metros. O tempo piorara, baixámos as mangas e seguimos, intervalando entre estrada e trilho, até à placa que nos aponta o PR 1, o mais incrível, que vai dali ao Pico Ruivo, 1862 metros, topo da Madeira. Mais um pedaço de Rede Natura e de vertigens a valer, com túneis para evitar outra subida, ao Pico das Torres (1851 metros), com derrocadas a periclitar o caminho, com desfiladeiro amainados pelo denso nevoeiro de algumas vertentes. São 6,1 km dos mais incríveis de uma vida, uma montanha russa carregada de fauna e flora e vento e frio esquentado pelos suores da altitude e escadas de ferro de degrau mais estreito do que o pé e de fundos cavernosos lá em baixo, o Curral de um lado, um vislumbre de mar além, as nuvens a fazer teto, a pedir agasalho, lanterna a apontar ao chão, luvas e mais o que valha. O dia iria até à Achada do Teixeira, numa contracurva que somou distância à travessia, paciência.

 

Entre fadas e elfos na Levada
Ao terceiro dia adiantamos-nos ao Sol, merenda na mochila e frio nas costas, uns cinco graus que se não o eram pareciam e, ó drama, chuvinha miudinha chatinha geladinha. Roubamos 11 km à ligação de ponta a ponta (perfeitamente compensados pelos excessos que vínhamos fazendo) e fomos diretos à Encumeada, noite dentro, para a surpresa do dia – o café do Luís, mãos a tremer à roda dos copos de papel, lábios enfiados no líquido fumegante, o frio é danado, ali à entrada daquele que é um dos quatro caminhos que Luís elege como imperdíveis nesta ilha tão diversa. O PR 17 e, nele, sobretudo, a parte da Levada do Norte, cascatas atrás de cascatas através da floresta Laurissilva e de túneis infindáveis a esgotar a bateria do frontal, com a Serra d’Água a fazer-se valer do nome que lhe puseram.

Levada do Norte (Fotografia: Ivete Carneiro)

 

E, porque temos a mania da semi-autonomia, voltámos a perder o trilho da travessia, cruzámos caminho de downhill, subimos-lo e descemos-los e subimos-los de novo, a escorregar paciência abaixo até resolvermos regressar à quase segurança do musgo da levada. Curvas e contracurvas e desnível depois, atingimos o grande planalto dos ventos e das vacas, no Paul da Serra, já a Madeira nos avisava que por ali não se brinca aos Gonçalves Zarco. O nevoeiro enrodilhou-nos, atrasou-nos, afastou-nos da razão, o trilho perdia-se nos tojos pouco frequentados, o cansaço de três dias de espanto começava a aparecer, a crescer até nos tolher os sentidos todos à exceção do olfato. Duas certezas: não temos covid e há espetadas algures no horizonte. Era sábado, o recolher obrigatório antecipava-se às 17 horas, faltavam duas, portanto, e a invisível Ponta do Pargo exigia mais 18 km. Para lá de três horas de caminho. Atirámos a toalha ao chão no restaurante Pico da Urze, que é provavelmente um dos melhores sítios para atirar toalhas ao chão. Domingo seria dia de voo e de calmaria, nada de loucuras que envolvessem mais de duas horas de estrada para ir e vir do fim do desafio. E o milho frito nos pratos pedia tempo de sabor. E as lapas frescas, “entregues hoje”, mais ainda. Para trás somavam-se uns 85 km.

 

Epílogo
O Luís é ultramaratonista, já se percebeu. Mas é, essencialmente, um apaixonado pela ilha que o viu nascer. Sequestrou-nos dos lençóis à beira-mar cedo pela manhã domingueira e enfiou-nos de novo no Larano que trilháramos em sentido contrário na primeira etapa. Não era castigo. Prometeu caminho plano, menos de 10 km, para abrir o apetite para o derradeiro almoço no Pipa. Mostrou-nos o percurso da travessia que perdêramos no primeiro dia, no fim da Boca do Risco. Agora, a manhã de Sol intenso aproximava o Porto Santo como nunca e foi na companhia dele que conhecemos a vereda do Caniçal, a desbravar vegetação aumentada pela falta de passagens, quais David Attenborough num jardim tropical a caminho de paredes arenosas e incertas. Até à Ponta de São Lourenço. Ao sabor da navegação.

 

Restrições aliviadas em maio
O segundo dia de maio viu aliviarem-se as restrições impostas na Madeira para conter a pandemia de covid-19. O recolher obrigatório passou a ser das 23h às 5h, com a restauração a fechar às 22h, com lotação até 50%. O teste PCR é obrigatório para entrar na Madeira, mas pode ser feito à chegada mediante quarentena até emitido o resultado.

Trilhos à medida
Luís Fernandes desenhou muitos dos percursos alternativos e menos “engarrafados” da região oriental da ilha. Na sua Explore Nature, propõe desafios à medida, a caminhar ou a correr, e até promove campos de trail que adapta à preparação dos participantes. À vontade do freguês e com hipótese de alojamento.

Comprada para ser protegida
Grande parte da península que constitui a Ponta de São Lourenço e os ilhéus do Desembarcadouro e do Farol foram comprados pelo Governo Regional em 1994 para garantir a sua preservação.

A misteriosa poncha
A “Poncha da Madeira” terá nascido no séc. XIX, inspirada no “panche” trazido da Índia no séc. XVIII. A ideia terá sido de pescadores, para enganar o frio. Leva limão, laranja, açúcar, mel e rum.

O pé de cabra
A olho nu, é terrível: o pé de cabra é aquele coice para arrancar para a labuta que mistura cacau, vinho tinto, cerveja preta, limão, açúcar e, quando feito em casa, gema de ovo. Um arraso.

Os imperdíveis
Não há um percurso melhor do que os outros na Madeira. Há diversidade. A não perder: Ponta de São Lourenço, vereda do Areeiro ao Pico Ruivo, vereda do Larano, Rabaçal (levadas das 25 Fontes e do Risco).

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.



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