As intrincadas linhas com que se cose o ouro na Póvoa de Lanhoso

Oficina certificada de produção de filigrana Abel Armando Silva. (Fotografia de André Rolo/Global Imagens)
Póvoa de Lanhoso é definitivamente uma terra de trilhos, sulcados a ouro, nas mesas da mais pura ourivesaria, nos montes que se observam das janelas quadrangulares e nos meandros da História. A de Portugal.

“Não há nenhum milímetro que não tenha o suor do artesão”. Rosa Silva fala junto à bancada sobre a qual Marisa, João e Luís se debruçam, o olhar perdido na infinidade do pormenor e alheio ao espetáculo da Natureza que se abre perante eles. As janelas quadrangulares de 1,40 metros – em tudo há regras – espantam-se para o vale de Sobradelo da Goma, afagada pela Serra do Merouço no interior da Póvoa de Lanhoso, verde pontuado de telhados e cal, silêncio puro. Por elas entra a luz natural que é a melhor para o labor. Porque o que eles fazem ali é riqueza: são mestres de filigrana, na terra que a fornece a Viana do Castelo.

No fim do correr de vidros, uma placa de cobre exibe a data de 1958 e a efígie de Abel Armando Silva, pai de Rosa, avô de Andrea, bisneto do “órfão de Travassos”. E é aí que grande parte da história começa. Da contemporânea, entenda-se, porque a História com H grande vem dos romanos e da Via XVII que por aqui passava a transportar gente e coisas de Bracara Augusta a Asturica Augusta, 350 quilómetros adiante, e a aproveitar para sugar as ricas minas do Entre-Douro e Minho e da Galiza do seu ouro. Sucede que aqui é terra de ouro. E que a arte romana da ourivesaria se foi impondo, dos simples torques à filigrana.

Oficina produção de filigrana Abel Armando Silva.
(André Rolo / Global Imagens)

Bom, mas é de agora que cuidamos: consta que o “órfão” seria exímio em duas artes, a ourivesaria de pormenor e o galanteio. Espalhou 17 filhos por várias mulheres e o vício do milimétrico pela maioria deles e pelos filhos e netos destes. Até chegar a largas dezenas de artesãos. Entre eles Abel Armando. É a tradição dele que vemos agora escorrer entre as mãos de Marisa, João e Luís, todos na casa dos 40, família que é sem sê-lo. A panela da fundição ainda é a de Abel, ferro fundido carregado de anos. “Trabalho aqui há 33 anos e a panela já existia”, diz João, maçarico na mão a mostrar o processo. Ali era mesmo uma espécie de escola da filigrana. Hoje, a formação concentrou-se em Gondomar. E a contrastaria também. “Dependemos deles”. É um lamento. Mas ali está o passado em forma de presente, um maçarico a gás, “gostamos de ver o fogo”, sorri Rosa, cilindros regados a álcool para o fio ficar “borrachão”, o carrinho que os faz filigrana, só a técnica de soldar contas de olho-de-perdiz com saliva é que parece arrumada. Um passado que exige “muita paciência”, justifica-se Andrea, licenciada em comunicação social, 31 anos e dedicada à arte na perspetiva da venda na ourivesaria Amada, na vila. Paciência não tem. Mas tem-na o irmão Daniel. E assim se alimenta a esperança.

João volta a atarefar-se em pequenos relicários, Luís curva-se sobre brincos que lhe levariam um dia a peça se se dedicasse a uma de cada vez, Marisa apura uma cruz de Malta que é muito mais do que isso. E o dia aquece naquele sul que se vê das janelas quadrangulares.

Embrenhar-se na Póvoa de Lanhoso é viajar pela perícia destas mulheres e destes homens cuja batalha, hoje, passa muito por deixar herança. Não é fácil. No triângulo do ouro desenhado pelas freguesias de Sobradelo da Goma, Travassos e Oliveira ficam a maioria das oficinas da Póvoa de Lanhoso. Elsa Rodrigues registou o nome que as pessoas davam à oficina dos pais que a ensinaram na arte de “encher”. A “Oficina do Ouro” é na mesma Sobradelo da Goma. É julho e Eulália, a filha a cursar ciências criminais, está com os olhos metidos num brinco de princesa. A encher. A pegar em microscópicos fios de ouro, a fazê-los cornucópias e a encaixá-los uns nos outros dentro de uma forma. Tem 23 anos. Descobriu agora a paciência, será das ciências criminais. “Sou perfecionista”. “Ficaria muito triste se nenhum filho aprendesse a encher”, admite agora Elsa, quinta geração de ourives e alívio na voz.

A filigrana é uma reserva que Eulália quer ter, nunca se sabe o que a vida prepara. O irmão, Fernando, já se agarrou ao vício. Desenha-o. Mas a jovem sabe que tanto ela como ele são raros. “As pessoas não ligam a isto”. Certo dia, Elsa resolveu sugerir às escolas que incluíssem a filigrana na disciplina de EVT e criasse um concurso cujo prémio seria uma peça de prata a reproduzir o melhor desenho. Debalde. Olha para o chão cuja poeira acumulada sob as lajes de plástico perfuradas há-de ser aspirada para recolher o ouro caído, como são aspiradas as gavetas da banca, como são lavadas numa banca com filtro as mãos cobertas de ínfimo pó ao fim do dia. E suspira. Lembra-se da casa dos pais em cima da oficina original – esta já tem luz artificial – e de chegar da escola para se sentar nela, “os outros a brincar e nós a trabalhar”.

“Esta arte é uma riqueza. Será que daqui a 30, 50 anos não haverá quem trabalhe a filigrana?” Elsa aprendeu com o pai. O marido, Arlindo Monteiro, trabalhava para o tio dela. Luís é irmão de Arlindo e aprendeu com ele. Agora é sócio. Esta arte é uma riqueza e uma intrincada história de família.

Casa da Filigrana – loja e oficina de Inês Barbosa. (Fotografia de André Rolo/Global Imagens)

Inês Barbosa era de Sobradelo da Goma, descendente, claro, do “órfão de Travassos”, mas tem hoje arraiais assentados em plena Póvoa, numa oficina com 12 ourives, o mais novo deles de 26 anos. A filha Rita sorri. Sim, há sangue fresco. Como o dela, 28 anos designer que também se senta à banca, e o da irmã, 24, que ali preenche as férias. Rita desenha inspirada na Natureza e nas geometrias em autênticas obras contemporâneas, a mãe vai buscar à religião e à Natureza, também, a tradição da filigrana. “Aprende-se todos os dias”, diz ela, que estudou design de comunicação e marketing apesar de ter crescido a fazer peças simples. Há dois anos resolveu começar a “encher” a sério. E a oficina tem hoje as peças a viajar pelo Mundo (exporta para o Japão ou para os Estados Unidos) e um belíssimo pequeno museu com fotografias, peças e ferramentas. Profissional da comunicação, percebe o valor da publicidade para resgatar uma arte em extinção. “Desde que Sharon Stone usou um coração de filigrana, não há dia em que não se faça aqui um coração…”

O que importa, afinal, é mostrar o que se faz. E a Póvoa de Lanhoso deve nisto muito a Viana do Castelo. “O ouro de Viana é como o vinho do Porto. O Porto não faz vinho”, graceja Manuel de Carvalho e Sousa, o homem do leme do Museu do Ouro de Travassos. “A Póvoa de Lanhoso e Gondomar são a produção, Cantanhede o centro tradicional de distribuição e Viana do Castelo a montra.” Sim, as famosas contas de Viana (as já referidas de olho de perdiz) têm dela apenas o facto de enfeitar as mulheres vianenses, que ainda se mostram honrando “o trajar e o ourar” no Desfile da Mordomia da Romaria de Nossa Senhora d’Agonia – o desfile deste ano é em 18 de agosto e contará com 800 mulheres a carregar 94 milhões de euros ao pescoço….

Mostrar é o que os mentores do Museu do Ouro, montado numa antiga oficina de janelas quadrangulares e portadas seguras ao tecto, querem fazer, exibindo peças sem idade que foram sendo recolhidas pelo pai de Manuel, Francisco Carvalho e Sousa. E contar que raízes tem esta riqueza. “A partir do século XVIII, a região tinha dois grandes produtos de exportação, vinho e carne barrosã, que eram pagos em libras de ouro. No Douro o ouro ficava nas grandes quintas. No Minho dos minifúndios todos tinham ouro e criou-se o hábito de dar libras nas comunhões e nos batizados. Passam a fazer parte do traje de casamento no alto Minho morgadio. Levavam um peitilho com ouro cosido, para mostrar à sociedade que se tinha uma rica filha.”

E, assim como foi para Viana, a ourivesaria da Póvoa de Lanhoso espalhou-se até ao Brasil, tal como a de Cáceres, semelhante à de cá, “fugiu” para a Argentina. Para trás nos séculos, Manuel recua até às minas que havia por cá, as tais ao longo da Via XVII, as maiores das quais em Leon (que deu à região ouro e a mãe de D. Afonso Henriques, nascida ilegítima de Afonso VI de Leão e Castela, talvez na Póvoa de Lanhoso), e às que havia em Gondomar. E aponta torques castrejos. Alguns dos exemplares que existem foram encontrados no Castro de Lanhoso…

Porque a Póvoa é ouro como o que pinta as contas da rotunda que dá as boas vindas a quem vem por bem, mas a Póvoa é também o território e as estórias que o compõem. Entre elas a da idade do bronze que ainda se ergue no Castro, um dos bem preservados do país. Ou, a coroar o mesmo Monte do Pilar onde se encontra este povoado pré e proto-histórico, a do Castelo de Lanhoso, construído no séc. X, em plena reconquista cristã. Ali foi cercada Dona Teresa, condessa e rainha portucalense e mãe de D. Afonso Henriques, pela própria irmã, Dona Urraca, em 1121. Ali foi assinado o tratado que manteria o Condado Portucalense como vassalo de Castela e Leão. Ali passou ela, já derrotada pelo próprio filho na sua conquista de um Portugal ainda por nascer. Teresa foi o poder feminino durante anos numa era de homens. Parece ser sina na Póvoa de Lanhoso esta força das mulheres. Ou não fosse a terra de onde se revoltou Maria da Fonte, tenha ela sido quem fosse.

Hotel Rural Maria da Fonte. (Fotografia de André Rolo/Global Imagens)

Maria da Fonte está na torre de menagem do castelo, mandada erguer por D. Dinis no séc. XIII (e que pode ser visitada por 1 euro), ou uma das representações que dela se fizeram. Reza a crença local que seria Maria Luísa Balaio, por ter uma tasca junto a uma fonte na vila e ser dada como uma das que encabeçou as mulheres de Fontarcarda que se insurgiram contra a proibição de um enterramento dentro da igreja românica da freguesia. Seria isso ou as políticas fiscais de Costa Cabral, que acabou por fugir para França quando a Revolução do Minho se estendeu a Portugal e se fez guerra civil. Porque era altura de lutas entre os liberais radicais que estavam afastados pelos conservadores como Cabral. Ninguém saberá ao certo se foi ela, Maria Luísa Balaio. Maria da Fonte é, para todo o sempre, um símbolo da revolta popular. Ergue-se, hoje, em frente à igreja de Fontarcada, em forma de estátua mandada criar pela diáspora povoense e paga por fundos populares. A própria estátua é história: começou por ser levantada no centro da vila, em 1978, foi dali retirada em 1996 por alguém que entendeu não representar o imaginário coletivo local, passou anos nuns calabouços municipais e regressou este ano à vida, mas no local onde tudo começou, Fontarcada.

A crença religiosa é o princípio da estória numa terra de um fervor católico que espalha imagens de Nossa Senhora pelo concelho e que tem o seu maior expoente uns quilómetros adiante, em Taíde, nas margens do rio Ave. O Santuário de Nossa Senhora do Porto de Ave tem tudo o que se espera de um santuário mais uma coleção de arte surpreendente. Comecemos pela génese: um professor do lugar de Porto de Ave pediu para ficar com uma velha imagem de Nossa Senhora do Rosário da igreja de Taíde que estava destinada à destruição, ergueu-lhe um altar em madeira e assistiu, pouco depois, à milagrosa cura da perna partida de um aluno. Seguiram-se peregrinações, esmolas, a primeira ermida em 1734, um misterioso restauro da imagem e romarias. E chegou-se ao mosteiro atual, que guarda uma talha tão dourada que explode à vista, azulejos joaninos e uma coleção de mais de 70 ex-votos.

Mas o Porto de Ave tem sobretudo uma romaria como poucas, no primeiro fim-de-semana de setembro, cujos convidados de honra são o bife à romaria e o melão de casca de Carvalho, tanto que apuseram à celebração o cognome de “romaria do bife e do melão”. Tanto que se criou uma “noite de gerações” na sexta-feira que antecede a festa, com música para todos os géneros e milhares de pessoas.

Mas o que é isso do ouro, afinal?
A pureza do ouro mede-se em quilates e em Portugal trabalham-se quatro “toques”: nove quilates, 14 quilates, 18 quilates e 19 quilates. E isto mede-se facilmente. Para 19 quilates, uma peça de dez gramas tem oito de ouro puro e o resto em prata e cobre, ou paládio no chamado “ouro branco” (antigamente era níquel, mas era mais resistente e duro de trabalhar, ainda que com a vantagem de ficar sempre branco). Para Para 18 quilates contam-se 7,5 gramas de ouro puro, nos 14 quilates são 5,8 gramas e nos 9 quilates são 3,75 gramas. O ouro rosa é fundido com mais cobre do que prata, o ouro verde é o contrário. Mas nenhum deles vale menos do que o amarelo se tiver a mesma proporção de ouro puro. Tudo isto é derretido a 1100 graus. E só se corresponder às regras passará na contrastaria.

A Carvalha, esse portento
Terá mais de 500 anos. Para saber ao certo seria necessário abatê-la. Falamos da Carvalha Grossa ou Carvalha da Fondoua (aqui é assim que se diz) de Calvos, que é o mais antigo carvalho centenário da Península Ibérica e o segundo da Europa. É um carvalho alvarinho (Quercus robur) que, como boa árvore velha que é, alberga uma colónia de vacas-louras. O Centro de Interpretação do Carvalho de Calvos está ali ao lado para explicar tudo. Junto às isntalações, o Centro Cyclin’Portugal da Póvoa de Lanhoso é o ponto de partida para 400 quilómetros de trilhos. Alguns passam junto de uma das jóias do concelho: a Barragem de Andorinhas, onde se pode andar de canoagem ou nadar a partir, por exemplo, do Parque de Lazer do Pontão. Com pernas, suba-se ao Monte de São Mamede, onde a lenda reza que as mães à míngua de leite para amamentar resolvem o seu mal entregando uma bilha de leite de vaca a Nossa Senhora de Lurdes.

Carvalho de Calvos. Centro de Interpretação do Carvalho de Calvos (CICC) e também Centro Ambiental da Póvoa de Lanhoso.
(Fotografia de André Rolo/Global Imagens)

Conhecer, sim, mas de barriga cheia
São João de Rei tem, de facto, um rei e chama-se Victor Peixoto. É o rei do bacalhau e quem a casa dele assoma sabe ao que vai: nacos de tamanho natalício assados na brasa, batata a murro e uma boa conversa com Victor. “Tenho ali a primeira página do Jornal de Notícias do dia em que nasci. Há 84 anos! Sabe que o Mundo está quase igual?”, diz ele, que segue quem se levanta para fumar, porque, diz ele também, nunca fumou mas sempre foi um apreciador passivo. A mãe não deixava e ele sofreu, admite, do complexo de não fumar. Sendo mais do género carnívoro, o Castelo Restaurante, que como o nome indica é junto ao Castelo de Lanhoso, é um pequeno paraíso com vista. Cabrito e posta na tábua no topo do Monte do Pilar, haverá melhor para retemperar as forças depois da subida à Nossa Senhora do Pilar?

Victor Peixoto e a especialidade do seu restaurante O Victor – bacalhau assado. (Fotografia de André Rolo/Global Imagens)

Outro paraíso com vista é, também, um paraíso radical. O Parque Aventura DiverLanhoso oferece uma lista infindável de atividades, incluindo pontes suspensas (12,20 euros), bungee jumping (23,30 euros), canyoning (41,40 euros), salto de pêndulo (20,30 euros), salto negativo (18 euros), rappel suspenso (12 euros) e slide (10 euros). E tem à disposição do público um Restaurante Panorâmico ao melhor estilo de montanha, onde é possível, por que não, ir apenas tomar o pequeno-almoço.

Se é açúcar que se quer, a Póvoa de Lanhoso é lar de um doce único: o charuto. Trata-se de misturar calda de açúcar, pão ralado, limão e canela e envolver em hóstia. Anabela Cruz é uma das poucas Doceiras de Simães que o fazem, com as irmãs, em Fontarcada. É perguntar na rua. Ou pôr as narinas a trabalhar.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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