Angeiras: histórias e segredos do mar

Chegada de um barco de pesca à praia de Angeiras (Fotografias de Amin Chaar/Global Imagens)
A zona mais a norte de Matosinhos, já na fronteira com Vila do Conde, preserva um modo de vida ligado ao mar, com os pescadores como figuras principais, que conservam a memória através das histórias que gostam de partilhar com quem por ali se passeia.

São bons contadores de histórias os pescadores que habitam Angeiras. Esta pequena “vila” piscatória, em Lavra, tem todo o seu quotidiano ligado ao mar e à agricultura, ofícios que há muitas décadas se complementam. Quem percorre o passadiço das praias e chega a Angeiras Sul, depara-se com parte da história musealizada numa pequena Casa do Mar antiga, testemunho da arquitetura tradicional da região – casas de lavoura, onde os agricultores guardavam os seus instrumentos de trabalho tanto da terra como do mar, visto que a pesca era mais sazonal e servia para complementar o trabalho agrícola.

Mesmo ao lado, um registo muito mais antigo que reflete a importância que ali o mar tem para as suas populações. São 12 tanques da época romana (séculos III e IV d.C), um dos seis núcleos existentes, escavados em rochas em frente à praia. Ali se salgava o peixe e se produzia garum, uma especialidade muito apreciada pelos romanos.

Praia dos Pescadores.

Mercado de Angeiras.

Aqui à volta, estes não são os únicos vestígios arqueológicos. Outros há que contam histórias mais recentes. Mas já lá vamos. Agora é continuar a andar pelo passadiço, passando pelas praias onde os banhistas cumprem os seus dias de verão, debaixo de guarda sóis e protegidos da forte nortada com para-ventos. Depois, a praia ganha contornos diferentes. O vento forte continua, mas parece não incomodar os homens que entre a areia e as pequenas casas do mar que servem de oficinas e armazéns de apoio vão tecendo as suas redes e preparando-se para a saída da madrugada.

São os pescadores, os cicerones de Angeiras, que com sorrisos convidam a dois dedos de conversa a quem ali se passeia. “Eu tinha 18 anos quando andei a primeira vez neste barco, agora tenho 32. Sou um foragido… tanto estou aqui como em França, tenho dias perdidos”, diz, a rir-se, Hugo Gonçalves, que faz companhia ao “ti” Joaquim, pescador de uma geração mais antiga, enquanto este arranja as redes dentro do seu barco. “O ti Joaquim é um excelente mestre, ensinou-me muito. Joaquim conhece a arte desde pequeno e agora lamenta o pouco peixe no mar. “Antigamente, havia muita sardinha, hoje é escassa. Os sonares afastam o peixe”. A pesca em Angeiras ainda é artesanal, “só se anda com redes, mais à costa, em barcos de boca aberta”, explica. “Esta vida é de risco. De setembro a maio é perigoso. Mas arriscamos porque temos de comer”.

“O mar nunca dá o que a gente quer”

Da geração mais nova é Nuno, sobrinho do ti Joaquim, que está na sua oficina a preparar a sobreira, rede de pesca de camarões. “Sou patrão desde 2012, mas comecei a ir para o mar em 2006. Antes, era eletricista”. Da sua geração há pouca gente no ofício, uns três, de cerca de 20 pescadores que atualmente ali trabalham. Acontece que os pais nunca querem que os filhos sejam pescadores, preferem que estudam e tenham uma vida menos dura.

Tanques romanos.

Tal como fez o Sr. Fonseca – chamado pelos outros de melhor pescador de Angeiras – com o seu próprio filho. “O mar nunca dá o que a gente quer”, queixa-se. Alguns minutos com ele, percebe-se que é também um bom contador de histórias. Uma das suas favoritas é o episódio que remonta ao tempo do seu avô. “Quando acabou a guerra, um submarino alemão que estava no mar, decidiu vir para cá porque éramos um país neutro. Então, chegaram perto da costa, afundaram o submarino e vieram em botes de borracha”. Acontece que não sabiam o caminho para terra e quando viram os barcos dos pescadores pediram ajuda. “Falavam estrangeiro e ninguém percebia nada”, diz. Mas ajudaram e acabaram por entregá-los ao posto da guarda-fiscal.

Esta história não acaba aqui. “Um primo do meu tio emprestou uma samarra a um dos alemães e ele nunca mais a devolveu”, conta. Até que umas décadas mais tarde uma reportagem sobre o acontecimento onde o pescador contava esse episódio passou na televisão alemã”. E não é que passado algum tempo o alemão voltou para lhe oferecer quispo! O submarino – um U-1277 continua ali afundado, “a desfazer-se” e é “bom sítio para se pescar. Vou lá muitas vezes à faneca”, conta.

Também é um bom sítio para quem se dedica ao mergulho. Há mesmo visitas que se podem fazer, através da empresa Submania. Mas esta experiência só está acessível a quem tem certificação avançada de mergulho (ver caixa).

A Casa da Guripa e os grelhadores à porta

O filho do senhor Fonseca, que não foi pescador porque o pai não quis, acabou por se formar em engenharia mecânica, que hoje exerce. Mas por acasos da vida, não ficou assim tão afastado do mar. Marco casou-se com Manuela Sousa. “Conhecemo-nos desde os 16 anos, agora tenho 42”, conta Manuela, também natural de Angeiras, onde os pais tinham um café. Juntos, abriram há cinco anos a Casa da Guripa, restaurante que ajudou a fazer crescer o quarteirão de restauração, mesmo atrás das casas do mar.

Casa da Guripa.

Depois de estar vários anos a trabalhar na área do marketing, decidiu mudar de vida, também porque queria ser mãe. “Comprámos esta casa que tem mais de 120 anos. Estas foram as primeiras construções que se fizeram aqui. Eram casas balneares de uma família abastada do Porto. A história começa com a avó do senhor a quem comprei a casa”. Conta-se que, na época, “havia aqui uns tanques de banhos de iodo e há quem diga que da “torre” (o andar mais alto do edifício), puxava-se a água que depois a pressão levava para os tanques. Era uma espécie de termas. O senhor a quem compramos isto tinha 93 anos e isto já era dos avós dele. A sua avó alugava barracas na praia e usava este edifício como um centro balnear”.

Abrir um restaurante foi um desafio, até porque Manuela queria montar um espaço diferente dos restaurantes que já lá existiam, “de peixe grelhado e fogareiro à porta”. Toda a minha família dizia ‘põe um grelhador lá fora’ e eu dizia ‘não vou pôr’. Com o tempo, as propostas culinárias do chef Hélder Sá, que entrou para a equipa passado algum tempo, conseguiram impor-se e cativar clientes. “Pegamos na base tradicional e demos-lhe um enquadramento moderno”, conta o chef.

Aqui há tapas, como as tradicionais amêijoas à Bulhão Pato, choquinhos fritos, gambas ao alho, mas também propostas diferentes. “Substituímos as pataniscas por tempura de bacalhau e temos tártaro de bacalhau em alternativa à punheta de bacalhau. Criámos um prato que é uma marca da casa, o pica-pau de atum, com batata doce e molho cítrico”. Além disso e do peixe grelhado, há arroz do mar, paella do mar e, este verão, “tacos de salmão e cornetos de sapateira que são um miminho”. Famosos são também o bife de atum e o risoto de gambas com espumante e lima.

De barriga composta, cumpre-se um dia perfeito em Angeiras. “O que sugiro aos meus clientes, é virem de manhã cedo, encomendar peixe no Mercado, vir aqui almoçar e depois ir buscar o peixe amanhado”. Quem for cedo, pode ainda ver os barcos dos pescadores a chegar à praia, depois de uma madrugada de pesca e observar todo o processo até ao mercado. Sobra tempo para passear e esticar a toalha na areia.

Foto: DR

Visitar o submarino com a Submania

Luís Mota, mergulhador e diretor técnico da escola de mergulho Submania, na Senhora da Hora (Matosinhos), visitou pela primeira vez o submarino alemão U-1277 em 1992. “Desde então nunca mais parei de o visitar e é sempre com agrado que o faço mesmo já contando com algumas centenas de imersões no local”, conta. Em 1995, começou a organizar saídas de turismo subaquático local. A escola nasceu mais tarde, em 2003. E desde o ínicio que promove o ensino e prática da modalidade assim como o turismo subaquático local. Também desenvolvem “escapadinhas lúdicas” a locais históricos na Europa tendo como fundo a origem e história do submarino U-1277, ou seja, a Segunda Grande Guerra.

O Quarteirão dos restaurantes

Ir fazer uma refeição a Angeiras é um hábito recente. Os restaurantes que ocupam todo o quarteirão atrás da zona dos pescadores existe apenas há pouco mais de uma década. “O primeiro a abrir foi a Barraquinha original, mesmo em frente à Casa da Guripa. “Era uma casa de pasto, onde se ia comer as famosas sandes PO (de presunto e ovo) e beber um copo. Um dia, o dono pôs um grelhador à porta e começou a vender peixe”, conta Manuela. Outros cafés ali seguiram o exemplo e assim nasceu a tão apreciada zona de restaurantes, por estes dias, repleta de comensais.

 

Casa da Guripa
Tv. de Angeiras, 20, Lavra
Tel.: 910609228
Das 12h às 15h e das 19h às 22h. Domingo, só almoço. Encerra à segunda.
Preço médio: 25 euros

Mercado de Angeiras
Rua da Solidariedade, 4
Das 7h às 16h. Domingo fecha às 13h e segunda-feira às 14h. Não encerra.

Tanques Romanos e Casa do Mar de Angeiras
Avenida da Praia de Angeiras
GPS: 41.2611, -8.7247

Submania – Escola de Mergulho
Rua Do Carriçal, 143, r/c, Senhora da Hora (Matosinhos)
Tel.: 934837434




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