Algarve: roteiro pela cidade pombalina onde o atum é rei

Vila Real de Santo António foi a primeira e única cidade iluminista construída de raiz, por ordem de Marquês de Pombal, no Algarve. Erguida entre o Guadiana e o Atlântico, pinhal e salinas, assistiu ao florescer e definhar da indústria conserveira ancorada na pesca do atum. Agora é tempo de o provar e descobrir as histórias deste sul pouco explorado.

À uma da tarde já, a sala do Pisa II começa a ficar composta, nada que atrapalhe a experiente equipa de mulheres habituadas a grandes enchentes de clientes, que em agosto chegam a esperar uma hora à porta. É grande (e justificada) a fama do restaurante, aberto há mais de 30 anos no centro da cidade, e cujo nome só por coincidência tem que ver com a famosa torre italiana. Entre as especialidades estão o choco frito inteiro, capaz de alimentar uma família, e os pratos que utilizam todas as partes do atum, peixe que alimentou toda a indústria conserveira vila-realense.

«Quanto mais gordura mais sabor», explica António Sebastião, de 63 anos, simpático e enérgico, ao colocar os pratos na mesa. Os mormos, partes cortadas junto à cabeça e temperadas com cebola, pimento e alho; a barriga; a espinheta; a estupeta, músculo da zona da barriga; a caldeirada de atum; o atum de cebolada e a muxama de atum (lombo do atum fumado) para levar para o caminho e ir comendo «com um pão e uma cerveja», aconselha ele. Todas as partes do atum são aproveitadas à boa maneira dos algarvios.

Sem rival, esta foi uma das espécies mais pescadas na zona, tendo alimentado uma próspera indústria conserveira até aos anos 30 do século XX. Disso mesmo dá conta a pequena exposição patente no Arquivo Histórico Municipal instalado no torreão sul, a dois minutos a pé do restaurante. Entre painéis, maquetas e filmes fica-se a conhecer a história de um setor impulsionado primeiro por D. José I, através do Marquês de Pombal, com a criação da Companhia das Reais Pescarias em 1773 (ano de fundação da cidade), e depois pelo elenco de empresários portugueses, italianos, franceses e espanhóis que foram abrindo fábricas em toda a frente ribeirinha, dotada de um grande porto e terrenos planos que facilitavam o transporte do pescado.

Entre os empresários estrangeiros estava o catalão Sebastian Ramirez, fundador da primeira fábrica portuguesa de conservas de Vila Real de Santo António, em 1853. Quando o filho Manuel García Ramirez assume os destinos da empresa, toma entretanto a iniciativa de mandar construir num terreno da família aquele que seria o primeiro hotel de negócios da região, para alojar empresários estrangeiros de passagem.

O edifício do hotel Grand House destaca-se na frente de casario virado para Espanha. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

O arquiteto Ernesto Korrodi, premiado pela sua estética própria entre a Arte Nova e a composição clássica, desenhou o mais moderno e requintado hotel da região, já equipado com casas de banho e água quente nos quartos. Um luxo em 1926 expresso também no nome, Grande Hotel Guadiana. A unidade viria a funcionar até 2007, com algumas interrupções, até ser votada ao abandono e transformar-se num palácio de pombos. «Estava abandonado há oito anos. Ainda havia chávenas com café seco lá dentro, o livro do check-out ainda estava aberto. Parece que tinham fugido», descreve Marita Barth, diretora-geral do agora Grand House.

O hotel abriu este janeiro após três anos de obras impulsionadas por um grupo de quatro empresários, um deles português, apostados em recuperar este património único de Vila Real de Santo António. Da fachada ao interior mantiveram tudo o que foi possível preservar, como as portas da entrada e a escadaria em ferro e o chão de mosaico hidráulico. Afinal, é também desses pormenores que se faz o ambiente de luxo de um hotel boutique como este. São 31 quartos, dos quais 15 duplos, e três suítes júnior; uma biblioteca, sala de massagens, bar de cocktails inspirados nos anos 1920 e um terraço. A decoração ficou a cargo do ateliê White and Kaki, de Almancil, e evoca um estilo colonial e náutico, em harmonia com a história da cidade.

A noção de luxo do Grand House assenta, ainda, na «autenticidade e alma» do lugar. «É tudo o que não se pode comprar», acrescenta a diretora-geral. Mas que se pode provar, por exemplo, nos pratos criados pelo chef Jan Stechemesser, tanto ao jantar, no Grand Salon, como ao almoço, no mais descontraído e balnear Grand Beach Club, na Ponta da Areia, a cinco minutos de carro do hotel. O chef revela uma forte ligação aos produtos locais, como o incontornável atum, o abacate, o tomate e a flor de sal, trabalha-os com estética e sabor, e faz o seu próprio pão. Os hóspedes que quiserem mergulhar a fundo no território podem visitar uma produção de azeite, receber massagens num spa salino em Castro Marim, voar de girocóptero, andar a cavalo na praia ou observar aves, entre outros programas.

A calçada portuguesa, tal como em Lisboa, marca a geometria desta praça em azul e branco. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)


A «petite Lisbonne» frente a Espanha

Passear pelo centro histórico também vale a pena, e um dia sem se ouvir falar espanhol nas ruas não é dia. Espanha está a um Guadiana de distância e até se consegue avistar a olho nu os seus empreendimentos turísticos. Os espanhóis são bem-vindos, animam o comércio de lojas de atoalhados e as esplanadas de cafés e restaurantes. Mas no século XVIII quiseram as circunstâncias que a relação entre os dois países fosse diferente. Era preciso passar uma mensagem geopolítica de afirmação para Espanha, com a qual Portugal havia estado em guerra em 1762-63, e controlar a entrada de mercadorias pela foz do rio.

Com o aval de D. José I, Marquês de Pombal mandou construir a cidade de Vila Real de Santo António a partir da antiga vila piscatória de Santo António de Arenilha (destruída pelo terramoto), dando origem à primeira cidade iluminista portuguesa construída de raiz, à imagem de Lisboa. Consta, porém, que nunca a visitou. Desenhada com 35 quarteirões, tinha, como ainda hoje, a sua centralidade na Praça Marquês de Pombal, com listas raiadas de calçada portuguesa e delimitada por quatro torreões. Ao centro e de frente para a Câmara Municipal e para a igreja de Nossa Senhora da Encarnação, observa-se o obelisco em honra do rei.

Tentáculos de polvo com mousse de batata-doce, um dos pratos de peixe do Sem Espinhas. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

No centro histórico pombalino encontram-se também o Centro Cultural António Aleixo – sala de espetáculos e exposições – e sobretudo serviços, lojas e restauração. Um deles, frente ao rio, herdou-lhe o nome e é o mais recente Sem Espinhas de um grupo que começou por ter um simples apoio de praia na Praia do Cabeço (Castro Marim) e já soma quatro restaurantes. Para aqui, a ideia foi trazer uma cozinha apoiada no peixe e marisco, claro está, mas mais sofisticada no serviço e na apresentação. E com uma grande aposta na garrafeira própria, ao todo mais de 300 referências nacionais e internacionais do novo e velho mundo, explica o escanção Luís Boneco.

Enquanto a chef Magali Corvo sugere pratos como um mil-folhas de salmão, tentáculos de polvo com mousse de batata-doce e um semifrio de frutos exóticos, polpa de manga e sorbet de limão, Luís Boneco propõe os melhores vinhos para os acompanhar, da entrada ao digestivo. Quem quiser pode, inclusive, comprá-los na garrafeira, assim como alguns produtos locais: flor de sal, compotas, doces, licor de laranja e chás de ervas. E conservas. Afinal, em Vila Real de Santo António o atum continua a ser rei, na lata ou no prato.

 

Visitar o farol e os faroleiros

Correia da Silva, faroleiro de 1.ª classe, é um dos três faroleiros que vivem com as famílias nas instalações do Farol de Vila Real de Santo António. Natural de Sagres, conta que o irmão já era faroleiro, o que o incentivou a seguir a profissão. A seu cargo tem as tarefas de manutenção diária do equipamento, pelo que qualquer faroleiro tem formação em eletrónica, eletromecânica, eletricidade, balizagem, farolagem e meteorologia. As curiosidades são todas reveladas durante as visitas guiadas abertas à população, às quartas-feiras. Este é um dos 30 faróis visitáveis em todo o continente e ilhas. Fica junto à foz do Guadiana e entrou em funcionamento em 1923. Lá em cima, a
225 degraus de distância (vencidos não sem algum exercício cardiorrespiratório), vê-se a lâmpada de 1000 watts que emite uma luz a cada 12 segundos (a «assinatura» do farol), visível a 48 quilómetros. E a vista a 46 metros de altura vale a pena: salinas, cidade, rio e pinhal.

 

Do pinhal à praia

O mar de pinheiros que se avista do topo do farol é a Mata Nacional das Dunas
Litorais de Vila Real de Santo António e constitui um sistema natural de fixação
dunar, controlo dos ventos marítimos e abrigo de fauna autóctone, como o camaleão.
Percorrendo o Caminho dos Três Pauzinhos (1200 metros), a pé ou de bicicleta,
chega-se até à extensa Praia de Santo António, onde começam 16 quilómetros de
areais atlânticos. Monte Gordo também pertence ao concelho, assim como Cacela Velha,
cuja Praia da Fábrica foi considerada pela ‘Condé Nast Traveler’ uma das 15 melhores
do mundo, em 2015.

 

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