Nazaré: Os segredos da vila além das ondas de McNamara

A descoberta das ondas gigantes na Praia do Norte foi a quimera do ouro para a vila da Nazaré, que se reinventou. Há muitos e bons restaurantes, espaços onde apetece estar. Mar a perder de vista e muita história para ouvir e contar.

«A Nazaré sempre foi muito turística, desde quando eu era nova. Mas nos últimos anos isto das ondas trouxe outra gente.» Francelina Quinzico é uma das muitas figuras típicas da praia, sempre pronta a contar a sua história e a da vila onde nasceu. Aos 62 anos, continua a estender ao sol todos os dias um rol de peixe seco, esse petisco que leva à praia tantos amantes. E curiosos, sobretudo. Observar de perto o processo de secar carapaus, sardinhas, marmotas (que aqui se chamam batuques) ou polvos, pode bem ser um momento de espetáculo. No areal, Francelina explica cada passo, fala aos turistas e demais fregueses do Museu (vivo) do Peixe Seco, que se divide em três núcleos e começa ali mesmo, na praia. Depois convida a visitar o Centro Interpretativo, na antiga lota.

«Não tenho dúvidas de que a secagem do peixe é uma das maiores atrações turísticas da vila», confirma Walter Chicharro, o presidente da câmara apostado em mostrar a Nazaré ao mundo – a publicidade em Times Square é o exemplo maior e mais recente –, trazendo-o depois para uma estada na vila. Quando os turistas chegam, é inevitável uma volta pelo mercado municipal, onde Inês Fialho ocupa agora a banca que foi da mãe, Isaura, e antes da avó, Maria da Nazaré, que dá nome ao espaço.

A fundadora tem agora 96 anos, já não amanha o peixe nem lhe prepara os banhos de salmoura. Mas Inês assumiu essa missão da família. Deixou para trás a vida de educadora de infância, em Lisboa, e regressou à Nazaré dos seus amores como peixeira e comerciante. Na praia, os paneiros pintados de azul fazem-na anunciar. «É muito simples: para um peixe mesmo seco, são precisos três dias de sol. Se preferirmos enjoado, basta um dia». O processo, ancestral, nasceu da necessidade de garantir a alimentação nos longos e rigorosos invernos. «A seca permitia a conservação natural, uma vez que não existiam outros meios de refrigeração.»

Onde está o melhor peixe fresco?

Na Nazaré os negócios da restauração passam de pais para filhos, um legado que muitos vão aprimorando nos últimos tempos. É assim na Casa Pires, no Sítio – o ponto mais alto, de onde é possível contemplar toda a beleza do extenso areal, o casario multicolor e o bailado das gaivotas. Rui Pires faz parte da terceira geração. Há dez anos, também ele trocou a cidade grande pela vila, convencendo a namorada lisboeta a abraçar aquela história e aquela vida. Era ali que a avó Alice assava sardinhas numa taberna, nos anos 1930. Foi ali também que o pai (Pires, antigo futebolista internacional) fez crescer o espaço enquanto restaurante. E é ali que hoje a sala enche, todos os dias, pelo menos duas vezes. É sempre mais seguro reservar antecipadamente, se a ideia é saborear o melhor do peixe fresco grelhado, seja garoupa, cherne, robalo, carapau ou sardinha.

Mas há outros assuntos a pedir atenção, entre eles o peixe-galo frito com arroz de tomate e a tradicional caldeirada, onde nunca pode faltar a raia e o safio, a que se junta o tamboril, o cantaril ou o cação. Caldeirada que se preze «faz-se com três tipos de peixe», para que não restem dúvidas. O edifício branco, junto ao Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, não tem qualquer reclame que o identifique. «Imagine se tivesse», sorri Rui Pires.

A Ermida da Memória.

Desça-se à vila – pelo Ascensor, por exemplo, um minuto de viagem que marca qualquer um, e que, só em 2017, foi feita por 910 mil pessoas. Lá em baixo há muito para descobrir em matéria de bem comer. Os apreciadores de bom peixe fresco apontam em paralelo à tradicional Casa Pires outra relíquia da Nazaré: a Taberna da Adélia.

Foi lá que Abel Santos se fez homem, entre a sala e a cozinha, agora à responsabilidade da irmã mais nova. Ele quis experimentar «qualquer coisa diferente», que servisse peixe mas de outra maneira. Que oferecesse uma boa carne, também. Uma carta de vinhos invulgar, à qual haveria de juntar-se a novidade de então: uma extensa carta de gin. Era junho de 2012, e a Nazaré antecipava-se ao país na recuperação económica. «Coincidiu com a explosão do fenómeno das ondas gigantes, que Garrett McNamara catapultou.»

E é aí, nesse ponto, que a história da Nazaré começa a contar-se de outra maneira. Deixa de ser apenas a vila piscatória que rende homenagem à arte xávega, ultrapassa a imagem dramática, a negro, de mulheres na praia de mãos postas a rezar – tão bem fotografada por Stanley Kubrick, antes de se ter notabilizado no cinema –, e sobe à crista da onda. O mundo do surf descobre a praia do Norte através de McNamara, e o surfista apaixona-se pela Nazaré, onde viria a casar.

A festa fez-se ali, na Taverna do 8 ó 80. Depois dele, outros gigantes do surf se tornaram clientes habituais do espaço, como a brasileira Maya Gabeira. Aliás, foi ela que inspirou um dos pratos mais apreciados ali na Taverna: atum braseado com salada de manga e pepino, puré de abacate e molho de iogurte. Mas outros, que facilmente arquivamos na caixa dos melhores sabores, como o (reinventado) arroz de lingueirão com molho à Bulhão Pato, ou o espadarte grelhado com batata salteada e banana.

Ao final, há uma mistura de sobremesas em miniatura que culmina numa explosão de sabores: mousse de chocolate com pimenta-rosa e flor de sal, crumble de maçã-pera-canela com leite-creme, ou panna cotta com doce de abóbora. São todos irresistíveis.

Pela marginal fora

Um passeio pela marginal Avenida Manuel Remígio é sempre uma tentação para os amantes da boa comida, acompanhada de um copo de vinho, cerveja (a artesanal está em franca expansão, em muitos restaurantes), ou de um simples refresco. Quase no final, já na Avenida da República, a Taberna da Praia exibe-se no seu primeiro verão. Parece importada de uma ilha grega, em tons de azul e branco, uma esplanada tentadora para o por-do-sol, e lá dentro a vitrine de muito e bom peixe ao quilo. A quem entra cabe a difícil tarefa de escolher a qualidade e o modo de confeção. Pode ser na cataplana, por exemplo, e isso ajuda na decisão.

Marco Martins e Dário Eustáquio largaram os empregos e lançaram-se nesta aventura à beira-mar. Inauguraram o espaço a 1 de maio e nos dias que correm não têm mãos a medir. Vale muito a pena experimentar alguns petiscos de entrada, como o polvo frito panado ou os rolinhos de salmão e camarão, com alho francês ripado. O mesmo acontece com o clássico peixe-galo frito, acompanhado de uma bela açorda.

O verão pode andar envergonhado, a esconder o sol muitos dias, que nem por isso a Nazaré deixa de ser luminosa, radiante nos trajes domingueiros das «chambristas», agora convertidas ao alojamento local. Ao domingo é provável encontrar algumas delas no melhor arranjo, envergando as sete saias por debaixo do avental bordado, laços bem feitos atrás. Blusas de seda enfeitadas com rendas. E depois os lenços atados no cocuruto. Juntam-se em grupos ou isoladamente no passeio da avenida e na esquina das ruas, de tabuleta na mão, a anunciar os habituais «quartos-chambres-rooms-zimmer-habitaciones». Ficaram conhecidas como chambristas, desde os tempos em que a oferta hoteleira quase não existia e os primeiros turistas estrangeiros falavam francês. O pintor Paul Girol, imortalizado na galeria municipal, captou como poucos essa forma de viver, nos anos 1960 e 1970, tornando-se um dos mais famosos embaixadores da Nazaré no estrangeiro.

A magia dos fins de dia

São dessa época os desenhos da revista Burda que agora decoram as paredes de uma das salas do Magic Hotel, acabado de remodelar. «Eu sabia que haveria de guardar estes desenhos, porque um dia teriam alguma utilidade. Acabou por ser esta», conta Esmeralda Soares, a proprietária. Segura na mão a fotografia de Maria do Espírito Santo e José Gregório Macatrão. «Isto tudo começou com eles», sublinha. O casal era proprietário de um restaurante naquele lugar, num edifício onde também havia quartos para alugar. E além disso, ele alfaite e ela costureira, mantinham um pequeno ateliê.

O casal não tinha filhos e deixou toda a herança ao marido de Esmeralda. Recuperou tudo o que podia do velho restaurante, e ninguém diria que a chita florida que agora forra as cadeiras de uma das salas era, afinal, toalha de mesa numa primeira vida. Os quartos dividem-se por temas da Nazaré e, nalguns deles, dá para alojar famílias até seis pessoas, em regime de aparthotel.

Mulheres dos “Chambres”, Emília Robalo e Nazaré Amada.

Diz-se na Nazaré que «todas as ruas vão dar ao mar» e que tudo se concentra na praça (Sousa Oliveira). É o palco da animação das noites de verão, com grande responsabilidade do Farol – Gin Bar. Hugo Freire está ao leme deste espaço que se especializou em cocktails, e que está a marcar os dias e as noites da praia, com música ao vivo. O gin continua a ser ainda uma especialidade, mas são os mojitos e as caipirinhas que ganham terreno. Na porta ao lado, um clássico: a gelataria Conchanata, que Justina Lima abriu ali mesmo há 39 anos. A geladeira continua a ser presença habitual no espaço, apesar de o negócio estar agora nas mãos da sobrinha, Ana Cristina Estrela. Os sabores de sempre ganharam a companhia de outros, nos últimos anos: pastel de nata e arroz doce estão entre os mais apreciados.

O Magic Hotel na Rua Mouzinho de Albuquerque.

Voltando à marginal, o dia bem pode terminar no À Deriva, bar onde também se pode petiscar – com os pés na areia se for essa a vontade –, perfeito para ver o sol esconder-se. Ana Galego e Miguel Batalha são, desde há três anos, a âncora deste espaço onde apetece demorar. Antes que a noite caia, ainda há tempo para sacudir a areia, atravessar a avenida e parar no Largo da Pinta, onde a loja Marias à Portuguesa é uma tentação para quem gosta de artesanato invulgar. Por lá encontramos Fátima Sales e a filha Sara. Sabe bem ouvir o barulho da máquina de costura enquanto se vê nascer peças únicas. São um sucesso no Instagram, estas duas criadoras.

Da Nazaré para o mundo, do mundo para a Nazaré. É essa pescadinha-de-rabo-na-boca que a vila e a praia servem, desde o porto de abrigo à praia do Norte. Entre uma e outra, o orgulho bairrista de Abel Santos resume bem o tempo que corre: «Mal acabe o verão, hei de ir com a família a Times Square, tirar uma foto em frente ao ecrã gigante que publicita as ondas gigantes, e a minha terra.»

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

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