Leiria: a cidade que quer ser capital europeia da cultura

Leiria vive a duas velocidades. A agitação da Feira de Maio, que mergulha parte da cidade num mar de gente, entre concertos e diversão, e a sorte de saborear o centro histórico longe desse bulício.

Passear nas ruas estreitas onde a arquitetura de Ernesto Korrodi alberga agora mais comerciantes do que moradores, onde os bares, restaurantes e lojas tomaram conta do cenário. Ir e voltar. Leiria já não é a noite do Terreiro (Largo Cândido dos Reis) de que os estudantes do Politécnico tomaram conta nos anos 1990. É a cidade que quer ser Capital Europeia da Cultura em 2027, e por isso vai ensaiando em todas as áreas, com a preciosa ajuda dos que a fazem viver, todos os dias.

«Somos a cidade mais bem posicionada do país, geograficamente. Mas Leiria ainda depende muito da iniciativa privada.» Quem fala assim é Vasco Ferreira, peça importante nesse puzzle do centro histórico, que a partir da Praça Rodrigues Lobo tem criado um leque de alternativas para quem gosta de boa comida, ou tão-só de apreciar a vista para o castelo, e acompanhar um momento de lazer com um bom copo de vinho ou cerveja artesanal.

Vasco e o sócio, Sabino Carvalho, complementam-se bem. A sociedade já vinha do tempo dos pais, na área do têxtil, e quando os filhos acabaram os cursos de mecânica e injeção de plásticos (Vasco) e matemática (Sabino), juntaram-se os dois à esquina daquele edifício, que a Levis chegou a ocupar. «A nossa ideia sempre foi valorizar a cidade, contribuir com projetos que tragam valor acrescentado», conta Vasco, que à sombra da estátua do poeta foi criando várias marcas.

 

A hora do Mata Bicho
Começou pelo Chico Lobo, seguiu-se o Lobo Mau, mas é no Mata Bicho – Real Taverna que conta esta história, num capítulo que começou em 2011. É hora de jantar e cheira a petingas em molho de escabeche na mesa do lado. Os petiscos colaram-se à imagem da casa, há quem não prescinda deles ao final do dia, na esplanada que mora ali o ano inteiro, fintando o inverno.

Mas há um rol de especialidades naquela Taverna, para saborear ao jantar: arroz de garoupa, polvo à lagareiro, cataplana do mar, pastéis de bacalhau com arroz de tomate. Depois há o forno a lenha, sempre pronto a fazer estalar a piza mais caseira. Ou ainda a opção do almoço, com uma sugestão do dia. Entre a ampla sala do edifício Zúquete (que até ao século XIX foi o palácio dos Marqueses de Vila Real) e a esplanada da praça, há capacidade para servir oitenta pessoas.

«Metade dos nossos clientes são turistas», conta Vasco, que não raras vezes encaminha uns e outros para outras experiências, no vizinho Chico Lobo. «Ali temos uma cozinha mais inovadora, de gastropub, com risotos, massas e hambúrgueres arrojados.», descreve o empresário, que anda a amadurecer a ideia de brindar a praça com sets musicais, festas after-work, mal o verão se anuncie.

O Rio Lis. (Ricardo Graça/GI)

 

Tostas de morcela ou alheira? Ora Eça…
Atravessar o centro histórico de Leiria não é apenas uma viagem no tempo, mas antes uma experiência intercultural. Há a comida indiana que leva seguidores até à Rua Gago Coutinho, paralela à Rua da Misericórdia, onde a antiga igreja deu lugar ao Centro de Diálogo Intercultural, junto à Casa dos Pintores, retratada por inúmeros artistas. Ali por perto há as tascas mais ou menos antigas como o Porto Artur, onde a Alzira e o Abel adivinham o gosto de quem os procura; ou o bar marroquino Nekob, que faz as delícias dos apreciares de chá.

Ficaram gravadas naquela zona as marcas da comuna judaica dedicada em tempos à tipografia e a todo o tipo de comércio, e que hoje convivem bem com as primeiras lojas alternativas (A Garagem Est.1990 e a Tucha), dedicadas ao punk e ao gótico. Estamos na cidade onde a associação Fade In criou o festival Entremuralhas, pronto a saltar para fora do castelo no próximo agosto. Qualquer dessas artérias vai desaguar na Rua Direita (o nome certo é Barão de Viamonte), que desce até à Sé. É ali que Susana Ventura e Luís Ferreira abrem todos os dias a porta do Espaço Eça, dedicado ao escritor, que celebrizou toda aquela zona da cidade no romance O crime do padre Amaro. Há quatro anos, o casal resolveu escrever a própria história nesta aventura.

«Pensámos numa cafetaria dedicada ao Eça, com uma biblioteca em que fosse possível ler a obra dele, um espaço para alimentar a alma mas também o corpo», conta Luís. E isso faz-se com tostas de alheira, sardinha ou morcela de arroz (um produto regional), acompanhadas de sumos naturais, vinho a copo ou cerveja artesanal. Depois há os bolos caseiros que Susana faz todos os dias. No tempo que lhe sobra, dedica-se à marca de artesanato que criou, há anos, no mesmo centro histórico de que é devota.

 

Destino: Apartado 28
«A Rua Direita é torta, os sinos estão fora da Sé, o rio corre ao contrário – em Leiria tudo assim é.» O ditado antigo corre pela história desde há muitas gerações, numa terra que fez dessas fraquezas forças. Passando o Largo do Gato Preto, tão pitoresco, como se o destino fosse a Avenida Heróis de Angola, há um desvio obrigatório desde há alguns meses: o Apartado 28. Dois amigos sonharam o espaço durante anos, fizeram uma pausa nos outros negócios (ele designer de sapatos, criador da marca Toranja, ela decoradora de interiores) e lançaram-se na recuperação de um edifício antigo.

«Mais do que um café», pode ler-se na parede do fundo do bar, de frente para o palco por onde passam músicos de jazz, soul, rock ou punk, ao fim de semana. No andar de cima, há quatro salas cuidadosamente decoradas e preparadas para reuniões, a que se junta sempre uma exposição temporária de um artista convidado, e uma ou outra marca de roupa, sapatos ou acessórios. Até final de maio, é Helena Cadete quem ocupa o espaço.

«Sempre quisemos que o bar fosse uma oficina de cultura, ao serviço dos diversos criadores», conta Humberto, enquanto saboreia um Selo Verde, o cocktail mais pedido da carta. É uma mistura de xarope de maçã com sumo de limão e vodka, uma explosão de cor e sabor. O Apartado 28 é fiel depositário de um brunch pronto a servir todos os dias, com croissants, éclairs e outros bolos a fazer lembrar Paris, onde os dois amigos se conheceram.

Leiria à noite. (Ricardo Graça/GI)

 

Livros, memórias e uma cafetaria em Arquivo
Retornando ao centro pela Avenida Combatentes da Grande Guerra, há tesouros guardados na Arquivo – Bens Culturais. À primeira vista pode parecer apenas uma livraria, mas quando passamos a porta número 53 percebe-se a diferença. Os livros fazem sempre companhia às exposições (até final do mês é Ilustração Têxtil, de Patrícia Guarda), aos debates, ao clube de fotografia, clube de leitura, tudo enquadrado numa agenda cultural que chega a todas as idades, com programas que pensam no público desde a infância à terceira idade. Alexandra Vieira herdou dos pais a livraria (fundada em 1980), mas em 2000 quis fazê-la crescer. Mudou-a para outra casa, onde houvesse espaço para a cafetaria, por exemplo.

«Os arquitetos acompanharam na perfeição o que se desejava para aquele espaço já por si tão bonito, cheio de luz», conta, ela que acedeu ao pedido do pai (entretanto falecido), José Ribeiro Vieira, um homem cuja marca ficou na cidade através de outros canais, como o Jornal de Leiria. Alexandra deixou a sociologia engavetada e, com a ajuda de João Nazário (atual diretor do jornal) e do braço-direito que é Susana Reis, tem levado a bom porto essa ideia de tornar a Arquivo uma verdadeira casa de cultura, em todas as dimensões. A mais recente aposta são as visitas dançadas às exposições, com a bailarina Inesa Markava.

«A agenda não para e as ideias também não», sublinha Susana Reis. Só nos primeiros meses do ano já por ali passaram Sobrinho Simões, Afonso Cruz, Gonçalo M Tavares, António Barreto, Valério Romão. António Lobo Antunes foi lá várias vezes. Saramago não foi ao edifício, mas juntou-se à Arquivo numa Feira do Livro da cidade.

 

Ao Largo da comida e amigos
Quando o sol se põe, é Ao Largo que Leiria se junta, num misto de «comida e amigos», como fica claro no lema do restaurante. Em frente ao Teatro Miguel Franco, no Mercado de Santana, havia uma loja de bicicletas. Era de Arlindo Cid, um dos quatro sócios deste projeto que privilegia a cozinha «mais tradicional, de conforto». Foi ele quem desafiou os outros três amigos para pedalarem juntos neste desafio.

«Chegámos mesmo a pensar em juntar as bicicletas ao projeto, mas com o tempo abandonámos a ideia», conta Sofia Xavier, enquanto à mesa chega parte dessa comida bem portuguesa e tradicional, inspirada em vários cantos do país. Porque afinal a comida são pessoas, lugares e memórias», enfatiza Sofia Xavier, que juntamente com o irmão Miguel e a cunhada Joana Areia e o amigo Arlindo formam esse quarteto que atua lá dentro de terça a domingo, com a preciosa ajuda de mais quatro pessoas.

E são essas, também, que fazem a diferença no atendimento, tão notada por quem lá entra, seja para saborear o atum braseado, a alheira com ovo de codorniz e grelos, a morcela de arroz com pimento ou outro qualquer petisco. «Todos os dias há uma carta nova», conta Sofia Xavier, que há um ano deixou a paginação do Diário de Notícias para se dedicar a este sonho antigo. «Sempre quis ter uma tasca», sorri. A noite já se pôs no coração de Leiria, lá fora, na rua pedonal, brincam os mais novos, enquanto os mais velhos se deliciam com o melhor da vida, prometido no slogan do Ao Largo: comida e amigos.

Uma vista panorâmica da cidade à noite. (Ricardo Graça/GI)

A tranquilidade de um hotel a caminho da praia

O verde do pinhal envolve o aldeamento Villas da Fonte – Leisure & Nature , a 15 quilómetros de Leiria e a 10 minutos da praia do Pedrógão. Emília Pinto começou por construir naquele terreno «umas casinhas de madeira», mas um dia uma amiga ligada ao turismo incentivou-a a avançar para o hotel. Nessa altura já tinha deixado a rádio. Desses anos dourados há memórias na parede do bar – fotografias dela quando jovem, ao lado de figuras do teatro e da música, alguns seus amigos.

«Este é um espaço sobretudo para famílias e casais, um lugar de tranquilidade», conta Emília, que desde 2014 já acrescentou ao projeto um restaurante (aberto ao público ao geral) e um bar. Um total de dez bungalows (muito procurados por famílias, por terem capacidade para seis pessoas) e cinco quartos compõem o hotel. A decoração é inspirada na proximidade do mar, sempre com o azul muito presente. Cá fora há sempre bicicletas à espera de quem queira aventurar-se pelo pinhal, ou seguir até à beira-mar. Quem prefere ficar tem sempre a hidromassagem, a piscina interior – no inverno – ou a exterior, mal os dias aqueçam. Ou ainda um jogo de xadrez gigante, para experimentar no jardim.

 

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