Opinião: Só paramos quando as estrelas forem todas nossas

crítico fernando melo
As estrelas Michelin portuguesas falam português. De um modelo fundador e que deu muitos frutos, com o Vila Joya a rasgar território novo em 1999, há hoje um conhecimento disseminado pelos restaurantes portugueses que permitiu a fixação de práticas sofisticadas e qualidade total que catapultou a alta restauração nacional.

Antes de fazer um voo rasante pelo país para tentar perceber rapidamente o que merecemos e o que podemos esperar, há que dizer à partida que, por muita paixão que ponhamos nos restaurantes e chefs da nossa predileção, a lógica Michelin é fria, objetiva, e rege-se por um trabalho sério de back office que não tem par em nenhum outro sistema de classificação. Logo a seguir, temos de reparar que uma estrela hoje nada tem que ver com as primeiras que nos calharam em 1929, então em Vila Nova de Famalicão e Viana do Castelo, menos ainda têm as duas estrelas de hoje qualquer relação com as duas estrelas conseguidas pela primeira vez pelo Escondidinho, no Porto, em 1938.

O guia vermelho nasceu para informar os motoristas sobre onde podiam montar os novíssimos pneus radiais inventados pelos irmãos Michelin. As estrelas diziam aos motoristas da sofisticação e preço dos restaurantes que havia perto das garagens, para instalar condignamente as pessoas enquanto se ia tratar do carro. Foi este o pensamento de André Michelin, com muito êxito. Desde 1900 até hoje, tudo mudou.

Cláudia Jung corporizou a primeira estrela conseguida pelo seu Vila Joya em 1994, a segunda veio em 1999, já depois do seu desaparecimento por doença, em 1997. Uma carga emocional forte, que ainda hoje pauta o labor de Joy – sua filha, atualmente à frente da casa – e anima diariamente o chef Dieter Koschina, que insistentemente continua a praticar uma cozinha de mercado, o menu é definido diariamente e não há carta; o mercado, a altura do ano, e a vontade do chef, que vemos muitas vezes de manhã nas compras. Confesso que me sinto confortável com a ideia de alguém tratar de nós com esse tipo de proximidade, mas tenho consciência de que é um quebra-cabeças para os inspetores Michelin, que têm de valorizar mais o lado sistemático do que o criativo. Isso está sem dúvida a reter a terceira estrela. Já o Ocean, no Vila Vita Parc, em Alporchinhos – vê-se do Vila Joya, com Armação de Pêra pelo meio – tem tudo para a receber. Hans Neuner e a sua indefetível brigada está mais do que pronto para isso. Tanto um como o outro são povoados principalmente por estrangeiros, os portugueses estão apenas agora a começar a perceber de que trata a lógica Michelin.

Um restaurante é uma empresa, com tudo o que isso implica, e é nesse lado empresarial – gestão, formalidade económica, fornecedores, recursos humanos, manutenção e serviço – que o guia vermelho se concentra. Claro que o produto é comida, por isso o inspetor tem de provar e validar. Mas o mesmo inspetor é alguém que trabalha para a Michelin em exclusividade e tem pelo menos seis anos de alta direção hoteleira no seu currículo. Os chefs portugueses que formam o pelotão dos bravos e assumem sozinhos todo o restaurante, sem confortos nem certezas absolutas, têm por isso muitas vezes que enfrentar o racional da Michelin e adaptar-se. É um jogo, em que temos conseguido marcar pontos.

José Avillez é a todos os títulos notável, tanto pela iniciativa como pela tenacidade, mantém um grupo grande em movimento e tem um staff de grande gabarito, e pode ser este o ano da sua terceira estrela, no Belcanto em Lisboa. Era bom, para todos nós e para a imagem de Portugal.

Leonel Pereira, no São Gabriel, Algarve, é uma viagem de rigor, sabor e consistência, em cada refeição que serve, era bom que assentasse a segunda estrela na sua porta. O Bon Bon de Nuno Diogo, no Carvoeiro, está firme com o chef Louis Anjos e a sua estrela, depois só paramos no Porto, na Casa de Chá da Boa Nova do chef Rui Paula, para saudar e esperar a vinda da segunda estrela. Mesmo que não aconteça, merece inteiramente a visita de todos os portugueses. Assim como o chef Renato Cunha, no Ferrugem, em Vila Nova de Famalicão, merece a primeira estrela, mas talvez não seja ainda este ano, por razões que a razão desconhece.

O esplêndido Epur de Vincent Farges, em Lisboa, abriu há pouco tempo mas na próxima edição do guia já terá a devida e natural estrela. João Sá, o chef português de quem podemos esperar muito, abriu agora o Sála, também é cedo para chegar à estrela mas seguramente vai merecê-la na próxima edição do guia. O chef Óscar Geadas, em Bragança tem de ter a estrela, está a fazer tudo bem e a superar as expectativas no seu G, projeto conjunto com o irmão. A Cozinha por António Loureiro em Guimarães é outra inevitabilidade, e uma grande experiência de refeição. Assunto diferente são os hotéis e os grupos hoteleiros, sobretudo pela disponibilidade financeira proporcionada pela atividade em si e pelo efeito global conseguido. A saída do chef Miguel Rocha Vieira do Fortaleza do Guincho não ajuda muito à vinda da segunda estrela, merecida já quando Vincent Farges ainda lá oficiava, espera-se reação pronta e eficaz. O Pesca de Diogo Noronha e o Alma de Henrique Sá-Pessoa, ambos da plêiade Multifood, são ambos experiências de muita força e inspiração. Merecem ambos a subida, o Pesca para a primeira, o Alma para segunda. Respirava-se melhor em Lisboa. E como precisamos de respirar melhor!

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