Proença: redescobrir o Centro do país à mesa e nos montes

São quilómetros de floresta, água e mais água, montes que se precipitam a pique para ribeiras, aldeias que parecem ter nascido do chão. E depois é a comida, o vinho, os rituais sociais celebrados nas adegas. Viagem ao centro do mundo, no Centro do país.

Está um grifo às voltas, junto à escarpa, e o Sol vai projetando a sombra do animal na parede da montanha. É um bailado hipnotizante o que se vê agora junto às Portas de Almourão, a garganta que o rio Ocreza escavou no relevo irregular de Proença-a-Nova. Naquele estreito entre os montes, a água corre rápida e a margem faz-se inacessível. Melhor vê-la do topo, galgando os trilhos que os rebanhos abriram na serra das Talhadas. Ali, do alto do desfiladeiro, a soma das desarmonias parece compor uma paisagem perfeita. Nada bate certo. Tudo bate certo.

Seja qual for o caminho, não se consegue chegar às terras de Proença-a-Nova sem atravessar as cinzas que tomaram conta do Centro do país no último verão. Mas depois desagua-se numa ilha verde, aqui resiste um dos mais desconhecidos pedaços do país. Enquanto as terras em redor reivindicam para si toda uma série de exclusividades turísticas – gastronómicas, económicas, naturais –, Proença não parece importar-se minimamente em angariar estatuto.

«Não quer dizer que não sejamos uma terra com boa comida, bons produtos locais e excelente património ambiental, dizia Catarina Alves, uma fã de escalada e turismo da natureza que trabalha no departamento de turismo do município, no fim da caminhada até às Portas de Almourão.

«Mas aquilo que nos destaca do resto é um certo despojamento. Temos tudo, sim, mas não há nada que tenhamos mais belo do que a vista a partir topo de um caminho de cabras.»

Então mais vale ir por aqui, pelos trilhos que os rebanhos galgam. Uma boa parte do concelho de Proença está inserida no Naturtejo, um parque reconhecido pela UNESCO pelo seu património geológico, paleontológico e mineiro. Aquelas formações rochosas, hoje pátria de gado ovino e bovino, foram há muitos anos ocupados por dinossauros, e há menos anos povoados por garimpeiros que se atreviam a descer ao Ocreza à procura de ouro. Hoje é abrigo para aves de rapina e escaladores que se aventuram nas escarpas.

Há uma série de trilhos marcados para descobrir a paisagem – e em boa verdade servem todos os gostos. Um dos percursos privilegia a descoberta de monumentos megalíticos e une três antas numa extensão de nove quilómetros, sem subidas demasiado acentuadas. Outro explora as construções que os portugueses edificaram para resistir às invasões francesas na serra das Talhadas. Mas não há nada como as rotas que dão primazia à natureza. São mais duras de galgar, sim, mas é aqui que se vê o centro do mundo.

Ao longo de uns dias em Proença-a-Nova é isso que se percebe: a declaração apaixonada a uma terra que os homens ignoram e as cabras percorrem. (Fotografia de Rui Oliveira/GI)

Um trilho passa pelas Portas do Almourão, sobe a uma gruta chamada Buraco da Moura e deixa-se descer por um lugar que a população chama de Escorregadouro. Outro percorre as várias praias fluviais do concelho e outro atravessa as aldeias de xisto. E todas elas têm em comum isto: a pedra e as árvores, os declives e a água. Na conjugação desses quatro elementos nasceu uma espécie de epifania paisagística. O posto de turismo local oferece mapas e conselhos a quem os quiser explorar.

No verão há as praias fluviais – são muitas e estão bem equipadas. Há o Malhadal e o Alvito da Beira, há Aldeia Ruiva e há a Cerejeira. Mas há sobretudo a Fróia, que é extensa, tem restaurante e alojamento nas imediações, mais um centro de BTT que apoia quem gosta de passeios pela serra em bicicleta. E não falta quem queira galgar a pedal a floresta para desaguar junto a uma poça ou a um ribeiro. É inevitável o destino aquático, até porque aqui a água não falta. Na aldeia ao lado, Oliveiras, Vasco Dominguez esculpe em xisto. Casas, pastores e gado, pois claro. Vê-lo a trabalhar vale quase tanto como dar um mergulho no rio.

Voltemos às cabras, aos seus caminhos e à vida que elas definem nas gentes. E para isso a conversa também tem de ser sobre comida.

Talvez o maior templo gastronómico de Proença seja a Casa Ti’Augusta, um restaurante que só serve refeições de sexta a domingo mas que faz um trabalho notável na recuperação das tradições da região.

Aqui as especialidades são as que tinham de ser: cabrito assado e naco de cabra, maranho e afogado da boda. Os donos da casa têm o seu rebanho, três centenas de caprinos para alimentar uma cozinha para a qual é aconselhável reserva. «Estes eram pratos ricos da vida comunitária», diz Joana Pereira, proprietária do estabelecimento. São dois pisos de homenagem à tradição, loja no andar térreo, restaurante no primeiro. «Matavam-se cabras velhas ou cabritos tenros e serviam-se como iguarias em ocasiões especiais, como casamentos e batizados.» Vêm caprinos guisados, secos ao sol ou em fumeiro. E depois um plangaio, farinheira com ossos enrolada em couve. Comida de camponês e delícia absoluta.

A Ti’Augusta há muito que morreu, mas a memória conservou-lhe a generosidade. Era quase santa: mulher que alimentava bocas famintas em Figueira, uma das 27 aldeias de xisto que existem em Portugal. Fosse viva e teria hoje 120 anos. «Cozinhamos a chanfana como ela fazia, em vez de tinto faz-se em vinho branco e hortelã. Os maranhos também são tradicionais, carne de cabra e arroz fumados no estômago do animal, cortados às fatias, podem vir quentes ou frios.» Na Sertã, ali ao lado, até fazem uma feira ao enchido, mas aqui tem requintes específicos. O corte das fatias e as couves a acompanhar.

Na povoação não há mais de 19 habitantes, mas conserva-se o gado. O mesmo nas terras em redor – e esse é o cartão de visita que interessa. Homens e cabras e a vida que criaram juntos. No Vale da Mua, extremo sul de Proença-a-Nova, não há fim de semana sem romaria de comensais. Vêm ao maranho, sim, mas também aos peixinhos do rio, fritos em azeite e servidos com migas de tomate e ovas. «Isto é que acalma as almas no purgatório», diz Jorge Alves, dono de uma casa que os pais abriram em 1974, o Noite e Dia. Numa bancada apresenta um sortido de queijos – e o leite caprino continua a reinar.

Os homens daquela aldeola parecem concentrados em três desígnios: levar o gado a pastar, recolher o peixe do rio e no fim fazer um banquete a propósito disso tudo.

«No Alentejo a vida social cimenta-se nas tabernas, mas nós somos diferentes», diz Celestino Dias, que nos encaminha para a sua adega como se quisesse mostrar um tesouro.

Cada pastor fabrica o seu vinho, e petisco na mesa não falta, ai de quem não jorrar um copo do pipo para servir os homens que ali se juntaram.

«Era nas adegas que se firmavam os negócios, que se acertavam os casamentos, que se festejavam nascimentos e se lamentavam as mortes», diz agora o homem, orgulhoso da tradição dos antepassados. Esta experiência não vem nos guias turísticos nem tem horas marcadas, mas é essencial para perceber as regras do território. Quem visita as aldeias de Proença-a-Nova há de vir parar aqui, mais cedo ou mais tarde. É o refúgio dos pastores, onde corre vinho e se abre o fumeiro. «Ninguém vai conhecer a alma deste povo sem se perder uma noite numa adega», sentencia Celestino, enquanto enche mais um jarro de vinho.

Mesmo no centro da urbanidade o culto da comida é incontornável. Em Proença há um restaurante chamado Milita, onde uma mulher farta de estar em casa decidiu pôr-se a servir antropologia à mesa. «Às vezes é uma cabeça de corvina grelhada, outras é uma caldeirada de línguas de bacalhau. Também tenho ossos em salmoura e açorda de codorniz», diz Emília Tavares, dona da casa. Aqui, o guilty pleasure fez-se serviço requintado. Talvez Milita explique melhor: «Olhe, oferecemos a comida que os outros restaurantes todos têm medo de servir, mas depois temos sempre as pessoas a lamberem os dedos.» Ri-se com a constatação, mas aquele é assunto sério.

As terras de Proença tornaram-se tão centro do mundo que há uma família a investir seriamente no turismo ali. Imagine o leitor uma aldeia no meio de nenhures chamada Catraia Cimeira, e agora imagine um hotel de dez quartos bem equipados, um restaurante com comida internacional, uma piscina nem demasiado grande nem demasiado pequena, mais um jardim em escadaria. Aquela construção pode não ser propriamente provável, mas é um caso de sucesso.

Chama-se Hotel Rural da Catraia, abriu portas em junho do ano passado. José Rodrigues, 86 anos, foi quem insistiu no capricho: convenceu filho e neto – Carlos e Rui – a apostarem na hotelaria ali. «Nasci aqui e emigrei para Angola, foi lá que a minha família cresceu. Mas sempre vi nestas terras um potencial de serenidade que não encontrei em mais lado nenhum. Então decidimos investir.» Têm vinhas e olival, e agora um hotel. Dizem que não há lugar mais especial do que este. O Centro de Portugal é o centro do mundo.

Ao longo de uns dias em Proença-a-Nova é isso que se percebe: a declaração apaixonada a uma terra que os homens ignoram e as cabras percorrem. Naquele pedaço verde de Beira Baixa está guardado um belo segredo. Perto da sede do município, por exemplo, há um centro de Ciência Viva que devia ser de visita obrigatória – é todo dedicado à floresta, explica fogos e combate aos incêndios, efeitos da devastação e indústrias alternativas. Mas há mais qualquer coisa aqui que é difícil de explicar. O tal despojamento – e o mundo todo nos caminhos de cabras.

Aldeias de xisto e monumentos geográficos. Fortes erguidos no monte para resistir ao invasor. Uma torre de vigia para espreitar toda a paisagem. Árvores e água e cascatas escondidas no bosque. Nas terras do Centro, onde toda a gente diz que só sobra inferno, ainda há um paraíso improvável.

Reportagem publicada na revista Evasões semanal – março de 2018.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

 

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