«Nem imaginam a mudança. Eu tenho família alentejana, mas não fazia ideia de que isto era assim, tão bonito, tão diferente, tão calmo, tão verde, tão montanhoso, tão frio, tão bom. Olha para isto». Talvez as palavras não tenham sido exatamente estas, perdoa-nos Susana, mas o entusiasmo aqui e ali, sobretudo aqui, tolda-nos a isenção. Isto é o Alto Alentejo, cinco e picos da tarde, um frio quase beirão, o sol a pôr-se enquanto pedalamos sobre carris numa espécie de ‘geringonça’ gigante que desde outubro se tornou na nova e surpreendente proposta turística do concelho de Marvão.
Os adjetivos, tantos, não estão aqui ao acaso. Até prova em contrário é algo único no país. O antigo ramal de Cácares, no troço Beirã – Castelo de Vide – Beirã estava desativado e Susana, juntamente com o companheiro, Lenny, conseguiram a concessão desta parte da linha. Rail Bike Marvão é o nome oficial. «Apresentamos a proposta à CP, uma estrutura pesada, conservadora, mas fomos bem recebidos. Ainda assim, foram cerca de dois anos de espera até que tudo se concretizasse e a certa altura questionava-nos se não estaríamos a ser demasiado sonhadores».
Receios naturais de quem deixou Lisboa para trás. Lenny, neozelandês, é pintor, Susana era uma das sócias do Café Tati, no Cais do Sodré. Viveram em Barcelona, mas foi junto a Marvão que encontraram a paragem perfeita para baixar o ritmo, olhar o céu com os filhos – não há céu como este –, sem filtros. A história está longe de ser original e o que mais há são famílias que deixou tudo para trás e se instalou no Alentejo, se bem que durante décadas os corpos pendiam mais para sul, para planície, para o mar, para o o quentinho. Nos últimos anos a tendência parece ter-se alterado, com cada vez mais gente a subir no mapa da região – empurrados pelo aumento dos preços, que hoje em dia já não se compra um monte por tuta e meia –, mas igualmente seduzidos por este Alentejo, porventura menos imediato, mas com mais camadas. «É lindo, não é?» atira Susana, mais uma vez, perante a Serra de São Mamede, um rebanho, castanheiros, sobreiros, bosques de carvalho-negral e o sorriso de espanto das pessoas com quem nos cruzamos, poucas.
A paisagem é o que é, já esta bicicleta ferroviária é estranha, inusitada, carrega uma certa poesia, daí as reações. Remete para a infância, uma certa ideia de liberdade. «Inspirámo-nos no que vimos lá fora, inventamos, adaptamos. Tivemos, inclusive, que mandar vir algum material da América». Para já têm seis viaturas e dois percursos, um de 15 quilómetros, «até à ponte, ida e volta» e outro mais longo de, de 32 quilómetros (16 para cada lado), até Castelo de Vide, com direito a paragem para um piquenique, dependendo a fome e da vontade. Pode demorar três ou quatro horas. Cansativo? Não, se bem que Lenny denote uma certa tendência para algumas pessoas pedalarem como se de uma corrida se tratasse. Logo eles que vieram para aqui para evitar correrias. Talvez por isso (e por segurança) tem sempre que ir um dos dois a acompanhar.
A partida e chegada é no antigo cais da estação, onde também funciona um bar, com aquele charme e rusticidade a que caracteriza estes projetos. Será um palco para concertos, porventura sessões de cinema, tal como já fazem os seus amigos Lina e Eduardo, durante o Festival Internacional de Marvão. São donos da gesthouseTrain Spot, que também ocupa o espaço das antigas estações ferroviárias. Também eles, vindos de Lisboa à procura de uma vida mais lenta, sobre carris.
Ainda há castanhas?
Sejamos sinceros: o objetivo inicial da reportagem era fazer no Alto Alentejo, sobre Marvão, a Mui Nobre e Sempre Leal Vila de Marvão, uma das mais encantadoras vilas portugueses, localizada lá no topo, a 865 metros de altitude – mas, sobretudo, sobre a castanha. A castanha é um dos produtos maiores da terra – aqui decorre, todos os meses de novembro, a Feira da Castanha e a Quinzena Gastronónica da Castanha – a verdade é que outras histórias e outros produtos atravessaram-se no nosso caminho. O Rail Bike Marvão, sim, mas também o azeite. E os cogumelos. E…
Para já, as castanhas. É certo que São Martinho já se acabou, e que por esta altura algumas das castanhas que se servem nos restaurantes podem muito bem ser congeladas, o que algumas pessoas não saberão – nós nem suspeitávamos – é aquilo que pode ser feito com ela e a partir dela. Os seus derivados, sub-produtos. Preparem-se, que a lista é longa: pão de castanha, bolachas de castanha, compota de castanha, bombom de castanha, toucinho do céu de castanha, beijinhos de castanha, mil folhas de castanha, cerveja de castanha… mil vezes castanha.
É precisamente este património que a empresa Terrius, criada em 2011 por Rita Beltrão Martins e Filipe Verdasca têm trabalhado. A farinha de castanha é um dos seus produtos bandeira, 100% castanha moída. Para que serve? Muitas coisas, desde sobremesas, bolos e sopas, até potenciar o sabor de cremes ou polvilhar pratos de carne, dizem eles. Mas não se ficam pela castanha, que este este chão é abençoado. Desenvolveram e comercializam também farinha de Maça da Serra de São Mamede, farinha de cogumelo, farinha de bolota integral ou a mostarda de pimento de Piquillo. Tudo à venda numa loja na aldeia da Portagem, junto à bonita praia fluvial que no verão se enche de gente, sobretudo espanhóis. Trabalham com vários agricultores, produtores, fornecem chefes famosos preparam cabazes – entregam em qualquer parte do país, por telefone ou internet organizam aulas aulas de cozinha, fazem visitas gastronómicas.
Gente da terra
Foram eles os nossos cicerones. Foi com eles que fomos ao Pavilhão 2, no Beco dos Outeiros, Ninho de Empresas de Marvão, em Santo António das Areias, local insuspeito, morada quase literária onde, garantem vários prémios expostos na prateleira, se faz uma das melhores cervejas artesanais da Europa, a Barona. Um nome, nove variedades, entre elas de castanha, «ideal para acompanhar um serão de outono diante de uma lareira alentejana com um cartucho de castanhas assadas na mão». Um grupo de três amigos, de áreas distintas, a enfermagem à economia, que começou a fazer cerveja na panela na casa da sogra e agora exporta para todo o país.
Foi com a Terrius com subimos a Marvão, ao restaurante Varanda do Alentejo – literalmente, uma boa varanda para a paisagem e comida da alentejana –, e à loja Marvão Com Gosto, onde Manuel e Cristina produzem e vendem pasteis de castanha (massa quebrada, puré de castanha, doce de ovos e doce de gila), e bolacha de castanha, estas últimas criadas por eles e inspiradas nas areias; foi com eles que entramos na Mercearia de Marvão, na Rua do Espírito Santo, espaço a cargo de Catarina, uma daquelas pessoas a que é difícil ficar-se indiferente, por mais viagens que façamos.
De um lado estão os produtos gourmet, para os turistas, do outro os produtos de mercearia, as molas, o papel higiénico, o shampoo. A vila tem menos de 500 habitantes, a população envelhecida, o supermercado maior fica lá em baixo, lá longe, ajudar é preciso. «Uma das coisas que mais gosto é de sentir-me útil», diz, um entusiasmo contagiante. «Recebo as cartas, as novidades, sou um bocadinho de tudo, de merceeira a posto de turismo». Trabalhou na Câmara local, como bibliotecária, foi despedida. abriu uma estalagem, a mercearia, faz visitas guiadas, ajuda, escreve histórias e divulga a região. Uma das entradas no seu blog, de 24 de julho de 2015 é sobre o Lagar Museu Melara Picado Nunes – Galegos, Marvão. «Foi este o lagar que visitei na passada quarta feira com os meus filhos. Já o conhecia. Num dia frio de Janeiro, há vários anos, fui lá fazer um trabalho com o avô do António, atual proprietário. O lagar estava a funcionar mas ao Sr. António já lhe faltavam as forças. Vamos a ver se o meu neto quer depois pegar nisto». Mais à frente escreve. «O Azeite Castelo de Marvão é o azeite que o António herdou e agora partilha com todos. Uma excelente forma para quem nos visita, de conhecer uma das artes mais antigas do Alentejo, a dos lagareiros, e um dos nossos produtos mais nobres, o nosso ouro. Um museu onde se trabalha, uma marca moderna. Vale a pena a visita, palavra de merceeira.»
Mais palavras para quê? está tudo dito. É para lá que seguimos, penas para fazer a visita da praxe, é lá que acabámos a almoçar, com o ‘neto’, António Melara Nunes, a mulher e o filho quatro meses, convidados para nos juntarmos a uma mesa corrida, farta de trabalhadores (está altura da apanha da azeitona), a comer bacalhau cozido regado com um azeite literalmente d´ouro, «extraído a frio, fino de acidez, cor esverdeada/ouro, amora frutado maduro e doce».
O mesmo azeite que encontraríamos ao jantar, na churrasqueira Sever. Já sabia que não nos serviríamos um simples frango assado – garantiram-nos uma outra vez – mas não estávamos preparados para tanto. Cogumelos, pois claro. Míscaros grelhados, miolada de tortulhos, tortilha de boletos, mil vez cogumelos – também veio para a mesa veado com castanha e pudim de castanhas – mas os cogumelos. Uma paixão de Filipe Pinto, o homem da casa, que, no dia seguinte nos haveria de levar, noite e terra adentro, um frio e uma beleza que só visto, pelo coração de Marvão.
Um turismo com arte
«Há mais de trinta anos, o Zé Manel, meu marido, andava por aqui a passear e a fazer trabalho de campo, passou por esta propriedade e o senhor, um agricultor, disse-lhe: isto ainda há-de ser seu. Ele não andava à procura de terreno, a verdade é que acabou por acontecer». As palavras são de Maria Leal da Costa, escultora, ela que juntamente com o marido, José Manuel Coelho, arquiteto, fez da Quinta do Barrieiro, um espaço de referência. De turismos rurais e hotéis de charme está o país, o Alentejo cheio e não é fácil sobressair, mas eles conseguiram-no. Está situada a 750m de altitude, em pleno parque Natural, rodeada pela Serra de São Mamede, uma vista única, se em que dar nas vistas nunca tenha sido um objetivo. A cor das casas foi pensada precisamente para se perder, integrar na paisagem, ver mais do que ser visto. O céu é limpo, as casas charmosas, espaçosas e confortáveis, (três T0, dois T1, um Loft e um T3), mas é o trabalho de Maria que lhe empresta uma alma extra, especial. O chão de alguns quartos foi pintado pela artista, a galeria onde trabalha está aberta aos hóspedes e há um parque de esculturas com obras suas espalhadas pela propriedade. Parque que pode ser visitado por qualquer pessoa, mesmo não estando hospedados. Um percurso de sobe e desce, que passa literalmente por dentro de algumas obras, obras essas que assumem diferentes perspetivas dependendo do sítio onde estamos, muitas vezes com o castelo de Marvão ou a Serra da Estrela. O objetivo não é apenas contemplar, mas questionar. “Nada é fácil, não foi feito para ser fácil», diz. Não é esse o papel da arte?
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