Graciosa: Viagem a uma das ilhas menos conhecidas dos Açores

As montanhas, o território, as povoações, na pequena Graciosa tudo é à pequena escala. Exceto a determinação de quem a povoou e continua a povoar. Teimosia, mais do que defeito, é a força de caráter que deu feitio a esta ilha que é uma preciosidade.

«A culpa é de eu ter caído da cama quando era bebé. Perdi o medo.» João Picanço tem frases destas. Um fino sentido de humor que, somado a um feitio «opinioso e teimoso», já lhe trouxe o seu quinhão de chatices. Mas também triunfos de monta, entre eles uma preciosidade chamada Pedras Brancas. Um vinho tão especial que sem teimosia nunca teria sido feito. Mas comecemos pelas apresentações.

João Picanço, 62 anos, nasceu «duplamente graciosense», filho de mãe e ilha com o mesmo nome. E assegura, desde 2004, a presidência da Adega e Cooperativa Agrícola da Graciosa, com incontido orgulho no reavivamento do cultivo da vinha. Chegou a ser um dos motores da economia, até que o campeonato da quantidade deixou de ser viável, perante o trabalho que as vinhas em solo vulcânico e o clima atlântico exigem. Daí a sua teimosia : apostar na qualidade, naquilo que é único, e com isso criar valor. Se antes a garrafa se vendia a 5 euros, hoje vende-se a 10 e as três mil unidades não chegam para as encomendas. «Ainda vamos chegar aos 15 euros e às 15 mil garrafas», afiança.

O Pedras Brancas está esgotado, mas João não resiste a abrir uma garrafa da sua reserva, para que tudo isto não se limite a conversa. É um branco feito maioritariamente de verdelho, com arinto dos Açores, e sabe a algo de novo. É, a um tempo, aromático, elegante, gastronómico. Por um lado, é uma curiosidade, um vinho inesperado. Por outro, um branco rico, ainda mais rico quando se sabe da sua raridade.

Toda esta conversa sobre vinho serve para abrir o apetite. Não para a comida, lá iremos, mas para a paisagem da Graciosa. Esta não é uma ilha como as outras. É mais pequena, desde logo, 12,5 quilómetros ao comprido por sete de largo, apenas o Corvo é mais diminuto. Depois, é também a menos montanhosa – a maior elevação fica 405 metros acima do mar, uma paisagem feita de declives suaves, adornados pelos padrões geométricos dos muros de pedra e por cabeços redondos, dispersos aqui e ali. A diferença de relevo traduz-se na quantidade de água – menos chuva, menos nevoeiro, solos mais secos. E um tom de verde não tão exuberante como noutras ilhas açorianas. No entanto, não deixou de se povoar. Mais não seja, por teimosia.

«Os recursos naturais influenciam a vida das pessoas», introduz Lizete Albuquerque, enquanto abre uma porta estreita, revelando uma escadaria que se lança chão adentro. «Os graciosenses tornaram-se um povo de arquitetos amadores», continua a guia. «Tiveram de inventar maneiras de captar e distribuir a água.» Dessa arquitetura da água, o reservatório do Atalho é uma das obras mais impressionantes. Pelos degraus, desce-se uns bons seis metros medidos a olho, para desembocar numa prodigiosa cisterna, cuja escala não se imagina numa ilha tão pequena. Data de 1866 e foi feita para segurar 1800 metros cúbicos de água, aproveitando chuvas e o excedente de um outro tanque.

Dois lagos, criados a partir de antigos paúis, dão forma à praça central de Santa Cruz da Graciosa. (Fotografia de Orlando Almeida/GI)

Na Graciosa, sempre foi necessário lutar com a geografia para ter água. Olha-se para a capital Santa Cruz, e é isso que faz de sala de visitas: dois lagos, antigas zonas de paúl, que já serviram para dar de beber aos animais e para a rega. Hoje não só dão forma àquela que será, porventura, a praça central mais ampla de entre as vilas portuguesas, como ficam de testemunho à resiliência dos graciosenses.

Para apreciar este postal, há que trepar ao monte que se ergue junto a Santa Cruz, e descansar o olhar na panorâmica de mar, campo, a vila e o miradouro da ermida de Nossa Senhora da Ajuda. Ali de cima, uma curiosidade – ou a derradeira prova de que esta gente não se espanta com facilidade. A ermida nasceu em 1717, como súplica por proteção divina dos terramotos que assolavam a ilha. Corridos dois séculos e meio, fez-se ali uma praça de touros. Onde? Na cratera do vulcão que originou o monte, círculo de geometria perfeita, onde os homens, além de se porem à prova diante de 500 quilos de fúria taurina, testam também a sua sorte perante a força dos elementos.

 

Piratas, burros e moinhos de vento

Santa Cruz é a povoação maior da Graciosa, mas não é por uma vila que se fica a conhecer uma ilha. É importante ir para a estrada, mesmo que a volta completa pela costa se faça em menos de uma hora. Alugar carro é sempre uma possibilidade. Outra é contratar os serviços de um guia turístico. Quem calhar com alguém como Lizete Albuquerque fica bem servido – de histórias, de recantos para visitar, de perspetiva. Essa perspetiva pode fazer toda a diferença entre um passeio e uma viagem. Num local remoto como este, conhecer os pontos de vista de quem aqui vive torna-se essencial para, mais do que entender, sentir o espírito do lugar.

«Aqui ainda se pode dormir com a porta de casa aberta», confidencia Lizete. Nasceu no Canadá, filha de pais micaelenses, mas foi o trabalho como professora que a trouxe até tão longe. Hoje, já não se vê a viver noutro sítio. Conduz com desembaraço pelas estradas da Graciosa, mas confessa, com nervosismo, que «é só aqui que o faz», não «nas ilhas grandes». A tal perspetiva . Para quem vem de fora tende-se a ver um arquipélago como um conjunto de ilhas, sem particular gradação entre elas. Quem aqui vive sente uma «dupla insularidade»: é preciso ir à Terceira, para daí ir a algum lado. E isso não é melhor, nem pior; apenas muda a perspetiva.

O burro-anão, originário do Norte de África (e trazido, porventura, por piratas), é uma espécie autóctone da Graciosa. (Fotografia de Orlando Almeida/GI)

Franco Ceraolo apaixonou-se por essa ideia. «Queria viver numa ilha», recorda este romano de 65 anos que fez carreira em cenografia para cinema. Uma senhora carreira: foi diretor de arte de Kundun, de Martin Scorcese (1997), trabalhou com Federico Fellini, Bernardo Bertolucci, e fez parte da equipa de 2O nome da rosa” (1986). Um dia, achou que já chegava. «Ouvi falar nos Açores e fui a uma livraria de viagens, em Roma, procurar mais informações.» Não havia nada sobre o assunto. «Aí percebi: eis o sítio certo para mim.»

Na Graciosa, já todos conhecem Franco. (Aliás, numa ilha de 4300 habitantes, toda a gente se conhecerá, nem que seja de vista.) Pelo feitio arisco. E pela teimosia onde encontrou o propósito para esta segunda vida: a recuperação do burro-anão. Não pelo negócio, mas para, pelo menos de início, incentivar a criação, não deixar que esta raça autóctone se extinga. E para reavivar a ligação entre os humanos e aquele que foi, durante séculos, «o motor da agricultura local», diz, abrindo a cancela para o terreno onde uma dezena de asnos pasta, na aldeia de Esperança Velha. Mal o veem, correm na sua direção. Todos têm nome e respondem à chamada. Platero chega primeiro, enfia-se-lhe por debaixo do braço, como quem pede um abraço. Será estrela de cinema em breve, na adaptação de “Platero e eu” que Franco está a preparar, com o realizador Gonçalo Tocha ao leme.

Estima-se que o burro-anão seja originário do Norte de África, o que leva à questão: como veio cá parar? «Por via dos piratas, talvez.» Não deixa de ser curioso, corsários que vêm para pilhar mas deixam algo em troca.

A par do burro, outra importação se tornou emblema da ilha: os moinhos de vento, de cúpula vermelha. Há discussão sobre a sua origem, mas a teoria mais corrente aponta para colonos flamengos ou holandeses. Persistem ainda duas dezenas, nem todos em exemplar estado de conservação, lembrando que, nos tempos do povoamento, a Graciosa produzia trigo e cevada. Chamavam-lhe Celeiro dos Açores. Hoje, estão todos desativados, alguns convertidos em habitações, outros em casas de alojamento local, para quem procura a experiência mais genuína.

Pela marginal da praia

Vila da Praia é o segundo maior núcleo populacional, mas é o principal destino para muitos: alberga o maior porto da ilha, o único areal para quem quer ir a banhos e uma frente de mar que puxa pelo lirismo, especialmente quando a luz rasante da madrugada pinta de laranja as fachadas da rua principal. Lirismo. Aliás, toda a ilha é propensa a isso, até Cavaco Silva se deixou contagiar, ele que vislumbrou sorrisos de satisfação nas vacas que olhavam para o pasto.

De Santa Cruz, chega-se a Praia em menos de 10 minutos, e isto já contando com uma paragem para deixar passar a ocasional manada de vacas e outra para respirar e pasmar no miradouro do caminho do Quitadouro, já com a vila e o ilhéu à vista.

O Ilhéu da Praia, importante zona de nidificação de aves marinhas, está protegido como Reserva da Biosfera. (Fotografia de Orlando Almeida/GI)

O Ilhéu da Praia, Reserva da Biosfera, é também aquilo que se avista logo pela manhã, ao pôr os pés fora do Moinho de Pedra, um desses espécimes recuperados para o turismo de habitação. Fica numa fiada de quatro moinhos, todos de frente para o mar. Este, porém, é o único com paredes em basalto nu, sem reboco branco por cima. Uma teimosia de João Luís, proprietário, que recusou a imposição de pô-lo igual a todos os outros. «Vi que a pedra era bem trabalhada, para quê escondê-la?». As autoridades acabaram por dar-lhe razão, por vezes vale a pena teimar.

No interior, três apartamentos amplos sob a eira e outro no corpo do moinho, a decoração segue essa linha rústica, com balcões de tábuas irregulares de vinhático, alfaias agrícolas e, no quarto mais cobiçado, cama sob a cúpula, para admirar o tricoteado trabalho de carpintaria. Sossego e comodidade fazem parte da casa. Pequeno-almoço é que não há, mas isso só dá ótimo pretexto para um passeio matinal à beira-mar, até ao Café & Sabores Félix. Vai-se com o sentido nas queijadas, 100 calorias de felicidade que se devora em duas dentadas. Mas há mais doçaria para experimentar: pastéis de arroz, amélias, queques de chocolate, tudo dá vontade de levar para casa. A boa notícia é que se pode: a fábrica das Queijadas da Graciosa, marca registada e com certificação Açores, fica por detrás do Moinho de Pedra, e tem uma loja para quem se quiser aviar em terra.

 

Água, Terra, Fogo

De volta ao caminho. Da Vila da Praia ao Noroeste da ilha, pode tomar-se as estradas interiores, para perder o mar de vista por momentos. E tomar o gosto aos pequenos povoados do interior. Guadalupe, que deve o nome a uma imagem da Virgem de Guadalupe trazida do México, no século XVI. Vitória, que assinala aquilo que o nome indica, contra um ataque de piratas. Meia-vitória, aliás, já que o capitão da ilha foi levado prisioneiro para a Argélia. Histórias destas, Lizete Albuquerque tem-nas de sobra, basta puxar-lhes o fio. Em menos de nada, alcança-se a estrada da costa, por onde, virando à direita, se chega ao fotogénico farol da Ponta da Barca, que se ergue 23 metros acima do chão.

Para a esquerda, chega-se a Porto Afonso. Aqui, já não há nada propriamente dito, mas vale a pena ficar sem pressas, porque afinal há muito para observar. O porto de pesca já desapareceu, levou-o a teimosia do mar. Hoje resta o cais de betão, e o lixo que as águas trazem, cenário desolador, porém com o seu quê de bonito. Na parede da falésia, de escora vulcânica, continuam lá as grutas escavadas pelos pescadores para guardar os barcos e artes da pesca. Depois repara-se na parede em si, camadas de vermelho, preto, verde, um folhado de diferentes erupções. Ao fundo, avista-se São Jorge, que fica a duas horas de barco, e ao fundo do fundo Pico e Faial. Mais do que ponto a riscar na checklist, este é um sítio para observar, portanto é normal que o tempo por aqui passe sem se dar por ele.

Ilustração de Telma Nunes

É claro que, a dada altura, o estômago pede conforto, e isso acorda-nos sempre das divagações pseudopoéticas. Quem seguir pela estrada da costa sul estará a apenas 20 minutos de encontrar aconchego, no antigo porto da Folga, à mesa do Estrela do Mar – tanto melhor se for na pequena esplanada, diante do Atlântico. É preciso ligar com antecedência. Para guardar lugar, mas também para saber o que há e garantir que ainda há quando lá se chegar. Só tem um prato, que muda consoante o dia, mas fica a garantia de que é feito com ciência. Maria Silva, 63 anos e cozinheira «há trinta-e-tal», sabe o que faz. Fica de exemplo a abrótea frita em farinha de milho, crocante como se adivinha, engrandecida pelo molho da vindima, uma receita graciosense que leva óleo da fritura, açaflor e o pujante alho da Graciosa. No final, lá estão de novo as queijadas – rara é a casa que não as sirva à sobremesa (e mais rara é a vez que elas sobrem no prato). São quase parte da paisagem.

De costas para o mar, repara-se afinal nas duas montanhas que fazem sombra a Folga. À esquerda, o Pico Timão (398 metros), que se pensava ser o ponto mais alto da ilha. À direita, a real detentora do título, a cumeada da Caldeira, que atinge os 405 metros acima do nível do mar. Para aí se dirige a etapa final da viagem. Pela inversão da ordem dos fatores: numa visita breve, a Furna do Enxofre seria a primeira coisa a visitar. Havendo tempo, guarda-se o melhor para o fim. Como as queijadas que teimam em sair ao caminho do visitante.

Este moinho de pedra, à beira mar, foi adaptado para o turismo em espaço rural com três apartamentos. (Fotografia de Orlando Almeida/GI)

A Caldeira é uma cratera de dimensão avantajada, 4 quilómetros de perímetro, 1600 metros de diâmetro, resultante de uma erupção ocorrida há 12 mil anos. A entrada fica 3 quilómetros acima de Folga, um túnel cuja travessia nos faz mudar de ilha: de uma paisagem de pastos e pomar, entra-se numa floresta de criptomérias, acácias e incensos. Mas não é isso que mais impressiona. Seguindo a estrada de paralelos que serpenteia por entre o bosque, dá-se de caras com um edifício de linhas direitas, elegantes, projetado da encosta. A partir daí, é sempre a descer, até à Furna do Enxofre.

Pode ler-se as descrições que se quiser que nada ultrapassa a constatação pelos próprios olhos. Muito se escreve que esta é a maior cúpula vulcânica da Europa, que tem 5 metros de altura por 150 de diâmetro, e por aí em diante. Mas estar debaixo desta abóbada de basalto, moldada por uma bolha de gás sob lava líquida, notar como as geografias da natureza por vezes são perfeitas, escutar a nitidez acústica que essas linhas perfeitas criam, tudo isso impressiona. E lembra por que motivo vale a pena ir aos sítios, mais do que apenas saber coisas sobre eles. Depois, entram os detalhes: o lago de água fria ao fundo da gruta, uma fumarola borbulhante, a vegetação que teima em crescer nas profundezas.

O príncipe Alberto I do Mónaco, um dos primeiros a explorar a Furna do Enxofre, descreveu-a como «milagre único da natureza». De facto, está listada como monumento natural, e chegou a figurar na lista indicativa para candidatura a Património da Humanidade, em 2000. Essa intenção foi retirada, mas não na totalidade: em 2017, foi de novo apresentada numa proposta mais ampla, no âmbito da Dorsal Mesoatlântica, e isso pode aumentar seriamente as hipóteses de fazer chegar a candidatura a bom porto. Tal como João Picanço, como Franco, como João Luís, como gerações de graciosenses que perseveraram numa ilha com falta de água: há que teimar. Por vezes, vale a pena.

Filipe e Débora Bettencourt, irmãos e proprietários do restaurante JJ, na Vila da Praia. (Fotografia de Orlando Almeida/GI)


Casa de bem comer

Pergunte-se a quem se quiser na rua, que a resposta pouco há de variar. Onde se come bem na Graciosa? No JJ, claro. Ou no Zé João, para quem prefere o nome original, de quando a casa abriu há 18 anos para vender o pão produzido por José João Bettencourt. Tornou-se depois bar, começou a servir refeições e acabou por se transformar num restaurante estruturado.
Hoje está entregue a Filipe Bettencourt, filho do fundador, que conta com a ajuda da irmã Débora na sala. Na cozinha, estão presentes os pratos que se espera, mas convém ligar com um par de horas de antecedência, a conferir que há aquilo que se procura. E o que se procura? Cavacos, cracas e lapas, por exemplo, se for deles temporada. Ou o peixe tratado por grelha competente. Ou então a alcatra de carne, que por aqui também se come, feita pela mãe de Filipe e Débora. Na comitiva de boas-vindas, uma seleção local: pão de produção própria, linguiça, mel e queijo, tudo graciosense. (Curiosidade: até o queijo produzido na ilha se chama Teimoso.) Caso o stock não termine entretanto, tudo isto pode ser levado à mesa na companhia do vinho Pedras Brancas. Pode, não, deve. Há oportunidades que não surgem duas vezes na vida.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

 

Leia também:

Passear pela Ilha Terceira, da cidade à natureza
Este é o «segredo mais bem guardado» dos Açores
Santa Maria: a ilha portuguesa que é um tesouro por descobrir




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend