Crónica de Pedro Ivo Carvalho: o álbum magistral que dá sentido aos lugares

Porto 14 / 08 / 2018 - Praia do Castelo do Queijo, na cidade do Porto. ( Igor Martins / Global Imagens )
Nada me faz viajar no tempo com tanta tridimensionalidade como a música. Posso não me lembrar com quem estive ou de uma data específica, mas jamais esqueço o que ia passando em fundo.

Ainda hoje, quando revisito a discografia empacotada nas bolorentas gavetas da memória, vejo o filme a compor-se em câmara lenta: os risos adolescentes naquele “88” apertado, mochila semiocupada às costas, toalha de praia emaranhada no pescoço, um walkman amarelo da Sony a debitar, re-pe-ti-da-men-te, o Electric, dos The Cult. Um controlo quase obsessivo do tempo de vida das pilhas. Era obrigatório que durassem a ida para o Castelo do Queijo, o período de maturação do bronze no areal de Matosinhos e a volta até São Roque. Não havia nada de matemático naquilo, mas eu sentia-me um académico renomado. O sal marinho que trazia colado à pele no regresso produzia o mesmo efeito da música. Inculcado em mim.

Um dia de sol em comunidade tinha de ser um dia de sol cerzido a melodias. Rock clássico, grunge, algum pop para conciliar humores. Trance nos dias de chuva, mas sem dizermos a ninguém que caíramos no pecado dos compassos enjoativos. Mais do que encher o peito ou a agenda com a frase «os lugares que visitei», prefiro avaliar as latitudes em função das bandas sonoras que me aconchegaram. A memória visual não tem o músculo necessário para patentear um registo definitivo, porque carece dos acordes, de um refrão, de um riff de guitarra, do movimento insinuante do baixo, da batida sincopada e seca de uma tarola. De uma voz envelhecida ou frágil.

Nada me faz viajar no tempo com tanta tridimensionalidade como a música. Posso não me lembrar com quem estive em determinado local ou numa data específica, mas jamais esqueço o que ia passando em fundo. Ainda que o esforço para me impressionar tenha sido inglório. Mesmo que os sons, de tão melosos ou grosseiros, tivessem resultado num não-acontecimento auditivo. Então certamente que a memória do lugar e das pessoas será nociva. Fosse esse lugar orgásmico ou fossem essas pessoas uma produção aprimorada de espermatozoides olímpicos.

Gosto de pensar nesta minha capacidade como geneticamente distintiva, mas temo que seja apenas um defeito. Porque o que ela me diz é que sou negligente com os outros sentidos. E que reduzo os lugares a um contexto que não lhes é intrínseco. A música. E, pior do que tudo, que catalogo as pessoas como uma lembrança por associação.

Tragicamente para essas paisagens mas felizmente para mim, a doença tem-se agravado. Sobretudo desde que os telemóveis se converteram em discotecas ambulantes. Ouvir até chegar aos sítios, ouvir nos sítios, ouvir no caminho de regresso dos sítios. Ouvir, ouvir, ouvir. A minha esperança (também podia escrever «medo») é que, daqui a uns anos, quando tiver dificuldade em ler a bula dos medicamentos, consiga ser capaz de resumir a parte melódica da vida num álbum magistral. E que nele caibam, da faixa 1 à 12, todas as brisas, os cheiros, as alvoradas e os mares que foram mantendo a orquestra afinada.

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