Opinião de Inês Cardoso: Ouvir o tempo

(Fotografia: DR)
Ao ritmo da natureza aprendemos o sabor próprio de cada momento. O aqui e agora, sem pressa do que virá.

São 365 folhas em madeira, a que se junta uma dourada que representa o 366º dia dos anos bissextos, cada uma com uma cara esculpida. Da autoria do escultor Paulo Neves, funcionam como cartão de visita do edifício principal da Quinta da Lixa e representam a passagem do tempo e o trabalho no campo. Como uma homenagem ao cuidado que uma vinha exige e a todos os que, anonimamente, vão arrancando fruto à terra.

Fixei por diversas vezes aquela chuva de folhas, num fim de semana de repouso entre as vinhas agora despidas, à procura das características únicas de cada uma. Venho do meio do pó e procurei naqueles traços as memórias de muitos dos que me fizeram. Conheço a paciência necessária para esperar o tempo certo de cada espécie, a aspereza do trabalho de sol a sol, a incerteza de uma colheita que não depende apenas do amor com que se lançam as sementes.

Retorno ao Pergulho e ao Estevês e daí aos lugares que a minha família numerosa me foi abrindo à volta do país. Giro com o meu tio Júlio na roda gigante, na Feira de São Mateus, demoro-me no trânsito caótico do IC19 a caminho da tia Jesus, passeio pela costa Oeste em verões de praia com as minhas tias, descubro os poços em que se fazia o gelo para a Corte na serra da Lousã.

No silêncio da sala dos avós, o imponente relógio de corda marca cada segundo. Ouve-se literamente o tempo.

O tempo tem uma dimensão diferente quando somos miúdos e nele parece caber tanta coisa. No silêncio da sala dos avós, o imponente relógio de corda marca cada segundo, tic tac, tic tac, seguro e implacável na sua marcha. Ouve-se literalmente o tempo a passar na hora da sesta, quando os 40 graus a meio do dia obrigam a procurar os recantos mais frescos da casa.

Noutros dias, no São Marcos ou nos serões longos de inverno, aquela mesma sala há de encher-se de vozes e o avô António contará com a sua voz forte mil e uma histórias que duvidamos serem reais ou imaginadas. Os contadores de histórias, como ele ou o meu tio Américo, têm esse condão de nos fazer sempre sentir que há novidade, mesmo quando as memórias se repetem. Transportam-nos além do possível e fazem trabalhar a imaginação.

Sinto-me revigorada e mais viva cada vez que consigo parar a ouvir a terra. Ao ritmo da natureza aprendemos o sabor próprio de cada momento. O aqui e agora, sem pressa do que virá. E volto a fugir a galope, com uma gargalhada mais ritmada do que os pés velozes do macho conduzido pelo tio Eduardo, segura de que haverá poucas sensações tão boas como voar devagar contra o vento. Escuto o tempo. E ele tem tanto para me dizer.




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