Crónica de Inês Cardoso: arcos mágicos intemporais

Vale do Ocreza. Fotografia: Manuel Correia
O sol, o rio e uma pedra a saltar sobre a água divertem sempre, perfeitos como todas as coisas simples que nunca passam de moda.

A tarde do último domingo foi inundada de sol, perfeita para ir com os filhos e os sobrinhos à beira do rio. Quando era miúda o Ocreza era palco de animados banhos, mas a construção de uma barragem pouco funcional tornou-o caprichoso, ora vazio e quase triste, ora engrandecido pelo incerto fecho de comportas.

Assim que agarrou seixos rolados, o Gonçalo correu para a beira do rio, decidido a fazê-los saltar sobre a água. Poucos minutos bastaram para se sentir desmotivado perante a visão de sucessivas pedras a afundarem-se ao primeiro impacto, num sonoro e deselegante “ploc”. Tentei ensinar-lhe os truques. O movimento do corpo, a rotação rápida da mão, a velocidade para transformar a pedra numa espécie de disco voador. Sem sucesso. Descobri que perdi o jeito e a pedra aterrou com a mesma pressa, a desafiar a minha paciência.

Quando era miúda, o meu pai perdeu horas a mostrar-me os segredos das pedras voadoras. As tardes de domingo eram longas e nelas cabiam piqueniques, torneios de sueca e aulas de natação demoradas. Um dos problemas de crescermos é que o tempo encolhe. Andamos à bulha com ele, como se fosse um inimigo que nos subjuga. Ter tempo tornou-se um luxo e desfrutar do momento uma arte.

Pus-me a pensar na falta que faz não fazer nada, deixando que o tempo se escoe lentamente. Sair para um passeio sem destino, parar numa curva a perceber o caminho que se segue, descobrir como os pensamentos são mais líquidos quando nos rodeamos de silêncio. Percorri mentalmente passeios desses, em tardes abafadas e paradas. Caminhei com a companhia do cheiro a rosmaninho, enchi as calças de resina peganhenta das estevas, recordei os moinhos de vento que o meu bisavô escavava em canas secas.

Os caminhos da memória são enganadores e às vezes tudo nos parece perfeito só porque já passou. A infância é um lugar de horas felizes e possibilidades infinitas. E como tudo é uma questão de perspetiva, é provável que a passagem dos anos distorça as coisas e as guarde melhores do que aconteceram. Uma espécie de álbum de fotografias em que nunca há composições tremidas ou desarranjadas. Só sorrisos largos e poses encantadoras, desenhadas para eternamente nos fazerem pirraça e nos carregarem com a ponta de nostalgia que a idade nos vai trazendo e a que juráramos solenemente que iríamos conseguir escapar.

Por breves instantes fiquei a pensar se a perfeição das coisas simples da minha infância seria pura invenção e se hoje, num mundo carregado de tecnologia, jogos, atividades e viagens, pareceria pequena e cheia de nada. Foi nessa altura que os miúdos desataram em gargalhadas espontâneas, a uma centena de metros. Um deles tinha escorregado de uma pedra e andavam a puxar-se uns aos outros, de sapatilhas molhadas dentro de água. Juntei mais uma imagem ao baú dos momentos sem grande história. As coisas simples divertem sempre. Molhar e sujar a roupa nunca passa de moda. Fazer campeonatos com os primos, por tudo e por nada, do monopólio aos seixos saltitantes, nunca deixa de divertir. O sol, o rio e uma pedra a traçar arcos mágicos sobre a água são intemporais.

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