Crónica de Luísa Marinho: para além do crime e do humor

Duas séries de detetives fazem parte das minhas memórias de infância: “Columbo” e “Crime, Disse Ela”. Hoje percebo que contavam muito mais do que histórias de crimes.

Por estes dias de confinamento dei por mim a querer rever séries que fazem parte do meu imaginário da infância. Séries que contavam histórias que não tinha a maturidade de compreender mas que me fascinavam pelas personagens e os ambientes.

“Columbo” é a que me traz as melhores memórias. Revi-a há pouco tempo e o fascínio da infância só cresceu. O magnífico Peter Falk dava corpo ao brilhante tenente Columbo, polícia do departamento de homicídios de Los Angeles que odiava armas e violência, resolvendo os seus casos observando e colocando as perguntas certas às pessoas certas, no momento certo. O seu jeito desmazelado, o charuto meio apagado entre os dedos, a gabardine ruçada ou o carro amassado são marcas inconfundíveis da personagem. Mas “Columbo” não era apenas uma série de detetives com laivos de comédia. Havia uma atenção aos problemas do seu tempo. Como acontece no episódio “Butterfly in shades of grey”, em que a vítima do assassinato é um homossexual. A determinada altura, o assassino tenta desviar a atenção, insinuando que terá sido o amante a matá-lo: “Ele pode ter sido morto por um namorado ciumento… essas pessoas têm uma certa reputação de comportamentos invulgares”. Insinuação à qual Columbo responde com: “isso não sei… na minha experiência, o que vejo são maridos loucos a matarem as mulheres e mulheres a matarem maridos…”. Pode parecer pouco, mas o facto de a personagem – numa série altamente popular – desconstruir com um sorriso uma insinuação que encerrava um profundo preconceito é significativo, principalmente numa altura em que a comunidade LGBT sofria de uma desumanização persistente, em tempos de plena epidemia do HIV/SIDA. Outra série popular era “Crime disse Ela” (“Murder, She Wrote”). Aqui, Jessica Fletcher é uma escritora de livros de mistério que também resolve crimes. Vendo agora alguns episódios, percebi que a série é explícita na importância que dá à representatividade positiva de pessoas tradicionalmente marginalizadas.

As duas personagens estão unidas pelo mesmo criador, William Link. O argumentista e produtor, falecido em dezembro passado, já nos anos 70 tinha causado polémica ao criar telefilmes que abordavam tensões raciais e outros assuntos tabu. Como “My Sweet Charlie”, história de um romance interracial, ou “That Certain Summer”, considerada a primeira ficção televisiva a retratar com simpatia personagens gays. Hoje, felizmente, a ficção é muito mais diversificada e inclusiva. E, provavelmente, William Link contribuiu para isso. Os seus filmes estão na minha lista para ver nos próximos tempos.




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