Crónica de Pedro Ivo Carvalho: “um certo misticismo que não se explica”

Praza do Obradoiro com vista para a Catedral de Santiago de Compostela. (Fotografia de Igor Martins/Global Imagens )
Pedalar nove horas por dia a partir do Porto, acusar as boas dores físicas e, no final, sentir um júbilo quase infantil, de conquista e superação.

Empreender uma viagem até Santiago de Compostela obriga, antes de tudo, a alguma preparação física. Façamo-la a pé ou de bicicleta. No meu caso, fui montado em duas rodas. Escolhi o princípio do verão para me lançar na aventura com uns amigos. Carrinha de apoio com alimentação e bens pessoais, malta mais experienciada nas lides cicloturísticas, enfim, tudo mais ou menos organizado para dar uma valente coça nos músculos. Algo que, ao fim do primeiro dia, se cumpriu na plenitude.

Por teimosia dos mais calejados, decidimos ficar a dormir num albergue de peregrinos, onde há regras muito específicas e a democracia é para não ser discutida. Há uma ordem para receber os viajantes (a cavalo, a pé, de bicicleta, enfim…) e ficamos dependentes das vagas. Afortunadamente (pensava eu…), tínhamos lugar. E que lugar! Uma sala ampla, pouco ventilada, com gente exausta de várias nacionalidades que ressonava em diferentes dialetos. Conclusão: na primeira noite não preguei olho. Abençoado banho de água fria nos chuveiros, abençoada pomada retemperadora.

A primeira noite foi realmente a mais dura. Mas o entusiasmo e a camaradagem depressa fizeram esquecer as maleitas do físico. Pernas ao caminho e seguimos viagem. O melhor de tudo são os momentos de silêncio, em que vamos a pedalar de forma mecanizada com a cabeça estacionada noutro lugar, num diálogo constante entre o corpo e a mente. Não sou nada de misticismos, mas não posso negar que vivenciamos episódios de alguma transcendência espiritual, em que somos confrontados com reflexões que, à vista desarmada, julgaríamos banais e desconexas.

Pedalar uma média de nove horas por dia desde a Sé do Porto deu para muita coisa. São centenas de peregrinos ao longo do trajeto, a quem atiramos um obrigatório “bom caminho”, há gente a pé, de cavalo, de bicicleta, velhos, novos, famílias, gente sozinha a cumprir um desígnio. Criam-se laços com desconhecidos, partilham-se alimentos e histórias, pagam-se cervejas em botecos esconsos, entra-se, no fundo, na dinâmica natural daquela comunidade. Chegar a Santiago de Compostela, ao fim de dois dias e meio, e cruzar a meta foi um bálsamo indescritível. As dores dissipam-se e somos invadidos por um júbilo quase infantil, de conquista e superação. Chegar ao fim é o princípio de algo novo. Quem vai, sabe que tem de voltar. Seja pela costa, seja pelo interior, seja por onde for.

Uma certeza temos: o caminho será sempre diferente. Mas será sempre um bom caminho.




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