Crónica de Pedro Ivo Carvalho: Quando a praia nos diz “estás velho”

Aos 20 anos, tudo parecia possível. Éramos invencíveis e o corpo pedia sempre mais. Agora só queremos aguentar aquelas horas com dignidade.

São as pequenas coisas que nos ajudam a perceber que já não exalamos o fulgor dos 20 anos. Nesse tempo, em que a água do mar podia ter uma temperatura próxima da do Ártico, nada era capaz de deter a corrida imparável entre a toalha seca e uma onda gelada. Não olhávamos para a cor da bandeira, não nos certificávamos da presença de um nadador-salvador corpulento, mergulhávamos como calhasse, onde calhasse, com um espalhafato cénico próximo de um pastor alemão quando descobre que é capaz de encharcar uma pequena multidão sempre que sacode o pêlo. Ficávamos eternidades no banho, não eram precisas boias, colchões ou barquinhos de encher. Nadávamos, molhávamos quem podíamos, trocávamos umas risadas. O tempo esvaía-se sorrateiro. Éramos capazes de nos estendermos durante horas na areal, ora jogando às cartas, ora lendo um livro, ora fazendo apenas o que fazíamos melhor: rindo dos nossos disparates. Havendo calor, mergulho. Vezes e vezes sem conta.

Havia, nessa simplicidade desarmante, uma relação direta com a nossa disponibilidade física. Semanas seguidas nisto, a pele mudando de cor, as viagens, em vez de cansarem, retemperavam. Agora não. Mal entramos no mar, sentimos os arrepios da água salgada a percorrer-nos o corpo, viajando do cachaço até à planta dos pés. Até aos joelhos ainda vá, mas depois, quando aquele cobertor gelado nos envolve, encolhemos como carpas. E então pensamos, naquele espasmo de tempo em que o nosso sangue gela, que a redenção ainda é possível. Mesmo ficando só cinco minutos na água, tentamos encher o peito e encolher a barriga no momento em que nos dirigimos para a toalha. Imaginando que, em fundo, ecoa a banda sonora do Marés Vivas e que todos veem em nós o saudoso Mitch Buchannon.

Para quem aprecia um bom livro no areal, a missão é ainda mais dolorosa. No ano passado, fui vergastado pelos meus filhos no momento em que decidi comprar uma cadeira de praia. Escreveram-me o epitáfio. Estava acabado, podia despedir-me da família. Na verdade, eles não sabem do que falam. A partir de determinada idade, já não se consegue ler de barriga para o ar e muito menos de barriga para baixo. Podendo ser um grito de alerta de que estamos mais para lá do que para cá, a cadeira de praia é uma tremenda conquista pessoal. E um sinal inequívoco de que estamos a envelhecer com dignidade. Ainda assim, sosseguei os miúdos: “Quando me virem a fazer palavras cruzadas debaixo do guarda-sol e a ouvir rádio no telemóvel, aí sim, têm razões para ficar preocupados”.




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