Crónica de Pedro Ivo Carvalho: nasci no Insta, vivi no Insta, morri no Insta

(Fotografia: Pexels/DR)
A liberalização do espaço de armazenamento eletrónico converteu-se numa espécie de novo mantra civilizacional. Fotografamos, filmamos e partilhamos tudo.

Já me acontecera antes, mas naquela vez, naquela noite em que, a umas centenas de metros de mim, Nick Cave derramava, em palco, as entranhas dilaceradas de um pai que morrera com os dois filhos perdidos, fui invadido pelo vazio da desistência. Porque olhei em volta e estava sozinho a ouvi-lo. Estava sozinho a sofrer com ele, a amparar aquela voz ora arrastada, ora crispada, ora apática. À minha volta estendia-se um compacto manto de telemóveis, todos no alto, as máquinas no lugar dos corações. Não arrisco dizer todos… bem, na verdade posso arriscar… todos aqueles que filmaram I need you certamente não voltaram a ouvir aquele pedaço fulgente de tristeza passados uns dias. Perderam tanto que não imaginam. Aquela declaração de derrota e de coragem em forma de canção não podia ter ecoado da mesma forma fora daquele ambiente, num lugar que não aquele vale humedecido do Parque da Cidade do Porto. Simplesmente não podia.

A liberalização do espaço de armazenamento eletrónico converteu-se numa espécie de novo mantra civilizacional. Hoje temos de fotografar tudo, filmar tudo. E partilhar tudo. Como se aquilo que não fosse parar ao Instagram não existisse de verdade. Como se a vida não fosse para ser vivida e lembrada sem registo que não o da memória sensitiva, associada a um som, a um cheiro, a um arrepio, a alguém que estava lá connosco, a alguém que gostávamos que estivesse.

A magia dos lugares não se esgota se não os partilharmos com terceiros. A alma não é obrigada à georreferenciação. Mas há criaturas, algumas das quais providas de inteligência, que não dão um passo sem o reproduzirem nas redes. Do lado de cá do ecrã, nessa bancada coletiva que nos une na separação, passeamos os olhos, sorrimos, franzimos de inveja e depois fazemos scroll até à próxima paragem, até à próxima pessoa, até à próxima experiência.

E então perguntamos, até a nós próprios: lembras-te daquele dia, naquele lugar, com aquela gente? E depois respondemos: espera, partilhei isso no Instagram, deixa-me ver se recupero as imagens. Mas lembras-te ou não? Lembro-me como? Que memórias guardas? Guardo tudo na memória do telefone. Não, na tua memória. Ah, essa. Esquece lá isso, desvia-te um bocadinho, que quero fazer uma foto ao pôr do sol, que está magnífico. Aposto que vai dar uma story memorável no Insta. Aposto que vai. Pelo menos durante 24 horas. Quem viu, viu. Quem não viu que visse. Que vivesse.




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