Crónica de Pedro Ivo Carvalho: mas vocês vão deixar-me comer sossegado?

Fotografia: DR
Aprecio sobremaneira um jantar no meio do caos, mas há momentos em que só queremos que nos deixem em paz. Nós, a nossa comida e o álcool com que cobrimos isto tudo.

Ambiente à média luz. Lâmpadas de filamentos a derramar uma temperatura morna. Musiquinha arrastada, uma funcionária solícita a servir de bandeja um sorriso largo e luminoso. Bem mais luminoso do que aquele metro quadrado feito de sombras e velas onde me sentaram.

Ainda assim, se houvesse uma Convenção Internacional dos Restaurantes, seria assim o artigo número 1. “É o estabelecimento (gosto tanto desta palavra) que faz o cliente e não o inverso”. Que é o mesmo que dizer que o cenário subjuga o ator. Porém, todos sabemos que a vantagem de haver regras é a possibilidade inata de as contornarmos. E há quem o faça com um denodo tão apreciável que não nos resta outra solução que não seja a de engolir em seco. As entradas, o prato principal e as sobremesas. Pois foi o que sucedeu.

Mas fixemo-nos na música pachorrenta desta história portuense. Noite quente lá fora, meia dúzia de mesas pontuadas por casais entrelaçados em diversas línguas do mundo turístico. Prelúdios à la carte. Porque a refeição é um portal sensorial para o mundo da intimidade.

Ora, estava eu imbuído deste espírito fraternal e afetuoso quando irrompe pelo estabelecimento (eu não disse que adorava esta palavra?) uma matilha de jovens esfaimados. À primeira vista, parecia tratar-se de uma Assembleia Geral das Nações Unidas ambulante. Dialogavam em francês, inglês, italiano, português e alemão. Consegui distinguir a palavra fome nos vários dialetos. E vinho, já agora. Bem, dinheiro fresco na equação, ainda mais fresco do que a sangria de espumante com que banhava o céu da boca, e subitamente aquele templo budista transforma-se numa apertada taberna de Munique. A luz coada começou a incomodar-me, o pão saloio que mergulhava no paté de azeitona enrijeceu, os espargos divinalmente cozinhados pareciam agora de plasticina. O copo alto à minha frente assumiu a forma de uma arma. Contive-me.

Se houvesse uma Convenção Internacional dos Restaurantes, seria assim o artigo número 1. “É o estabelecimento que faz o cliente e não o inverso”

O vitaminado grupo de 15 lançara uma OPA hostil sobre a clientela do restaurante, rés do chão e primeiro piso incluídos. Tudo patrocinado pela mesma funcionária solícita e mal paga que não pode distinguir carteiras e, em particular, pelo dono do estabelecimento (perdoem-me a recaída) que ia distribuindo garrafas de vinho caro na direção daquela mesa longa com a destreza de braços de um croupier no casino.

Não pude deixar de notar a forma aflitiva como um casal de franceses sentado atrás desta tempestade se contorcia. O olhar apaixonado dele fazia ricochete no empedrado gargalhar da matilha, e à companheira não restava outro remédio que não abeirar-se ainda mais da sua boca para entender o amor.

Se realmente houvesse uma Convenção Internacional dos Restaurantes, devia ser este o artigo número 2: “O estabelecimento (nem vou comentar) tem a obrigação de satisfazer o cliente com pratos de suprema qualidade e prazerosos sabores e deve zelar para que o faça em sossego”. Escrito a itálico e em bold.

Notem: eu aprecio uma mesa caótica ao jantar, mas há momentos em que só queremos que nos deixem em paz. Nós, os nossos pensamentos, a nossa comida e o álcool com que cobrimos isto tudo. O direito ao silêncio é universal. Também à mesa de um restaurante.

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