Crónica de Pedro Ivo Carvalho – Lanzarote: o caminho das pedras e dos catos

Não é necessária uma orquestra de cores para nos deixarmos enredar. Esta ilha vulcânica consegue ser monocórdica, mas não há, nessa leveza de caráter, qualquer assomo de vulgaridade ou enfado.

Por mais ínfima que seja, há alguma possibilidade de nos deixarmos arrebatar pela aridez em estado puro? E por aridez entendam a mais completa secura de paisagem. Rocha, rocha, rocha. Sim, há. Pedras negras encavalitadas, formando um intrincado puzzle natural, tão desalinhadas na geometria que parecem ter vida própria. De certeza que foram parar lá sozinhas, só podem ter ido parar lá sozinhas, hospedadas que jazem numa cama definitiva e secular.

Os castanhos dão lugar aos cinzentos, há fases em que o dourado desponta, o vento que sopra de todos os quadrantes assobia de fininho ao nosso ouvido. O vento fala. “Não te distraias, não tentes segurar-me com as mãos”. O caminho das pedras é também o caminho dos catos. Pedras e catos. Catos e pedras. Numa sinfonia agreste sem palco. E sem bichos. Esperem. Minto.

Ali há, rezam as vozes autorizadas da ilha, uma réstia de vida. Um mosquito microscópico que só os apaixonados por mosquitos microscópicos distinguem nas gravuras dos livros de lombada generosa. Não há flores, não há lobos, nem gatos. Não há gaivotas. Mas há mar. Eu não vi o mosquito. Eu não consigo acreditar que ele se multiplique ali. Aquele vale bíblico não é cenário para romance.

Sigo. Garganta seca e olhos escancarados, sempre escancarados. Os vulcões forram a linha do horizonte e garantem a pequenez necessária à nossa condição de invasor. Qual é mesmo o nosso lugar? Verde escuro, castanho claro, negro cerrado. De uma ponta à outra do território duro, cavalgando a pacatez do alcatrão imaculado que rasga as bases das montanhas, podemos repousar, serenamente, sem trânsito, sem barulho. Catos e pedras. Se fecharmos os olhos, quase escutamos o bater de asas do mosquito microscópico. Já alguém o viu fora das lâminas do laboratório? Fujam da estrada, vem aí um carro.

Saramago entregou-se àquela ilha por alguma razão. Não quero acreditar que tenha sido apenas por uma, não saberia escolher apenas uma.

O norte. Juram-nos que o vinhedo é um espetáculo à parte. Que não nos deixará os olhos humedecidos como a imponência do adormecido Timanfaya, mas que a peculiaridade dos berços ovalizados amparados da ventania por pedras gastas confere à vinha um estatuto cosmético próximo do bonsai. Posso confirmar: filigrana licorosa, meus amigos.

Não é necessária uma orquestra de cores para nos deixarmos enredar. Lanzarote consegue ser monocórdica, mas não há, nessa leveza de caráter, qualquer assomo de vulgaridade ou enfado. As águas são cálidas, mesmo no oceano revolto, a areia brilha, mesmo quando escura. Saltitamos de estádio mental para estádio mental. A paz seria absoluta se não fossem as hordas de camionetas e de turistas italianos com a mesma projeção vocal de um vulcão zangado. Lemos o que havia para ler dele.

Saramago entregou-se àquela ilha por alguma razão. Não quero acreditar que tenha sido apenas por uma, não saberia escolher apenas uma. Lanzarote são pedras e catos, mas é, sobretudo, uma via-sacra que vai dar a um lugar melhor dentro de nós. Fica uma cicatriz enorme no corpo encolhido. Deem-nos luxúria, sinfonias, o Olimpo, até. Mas poucas imagens serão tão plenas na função de nos humanizar como a aspereza deste ancoradouro vulcânico. Catos e pedras. Pedras e catos. Flores.




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend