Crónica de Pedro Ivo Carvalho: Estamos juntos ou demasiado juntos?

(Fotografia: DR)
O ser superficial degenerou no ser visceral. Com o vírus, ficamos mais longe, mas também insuportavelmente mais perto. É como comer bolo de chocolate todos os dias.

Na narrativa delicodoce da pandemia já vimos hasteados vários conceitos. Do prosaico “Vai ficar tudo bem”, em que nem as crianças do pré-escolar acreditam, ao coletivista “Estamos juntos”, que é falho de sentido, mas encerra uma abrangência tal que pode ser usado num grupo de whatsApp de Cross Fit ou num comentário avulso no Facebook sobre a morte de um parente distante. Sempre existiram slogans ao longo da História, mas a futilidade das redes sociais e a necessidade de estarmos constantemente realizados aos olhos dos outros conseguiram transformar as máximas em mínimas.

Detenho-me neste último, porque envelheceu melhor do que o anódino “Vai ficar tudo bem”. “Estamos juntos”. Parece um paradoxo, porque o maldito bicharoco forçou-nos à separação comunitária, mas se virmos a coisa com a lupa de um comentador de futebol quando analisa o empurrão de um defesa na grande área, é tudo uma questão de intensidade.

Estamos juntos, é um facto, e esse é exatamente o problema. Demasiado juntos. Confinar em excesso com vistas para as mesmas pessoas é como comer bolo de chocolate todos os dias. Acabamos enfartados e a detestar bolo de chocolate. Enjoar na abundância, ainda assim, será sempre melhor do que comer pão seco sem nada.

A gestão do espaço entre nós e os outros, e sobretudo o silêncio que devia pautar esses relacionamentos, deixaram de contar como uma conquista natural e transformaram-se numa necessidade absoluta. O ser superficial degenerou no ser visceral. Gosto de ti como de um gelado de limão, mas por favor cala-te um bocadinho. És certamente o amor da minha vida, mas deixa-me aqui sossegado a ler um livro, não queiras ser o amor da minha morte. Já te expliquei que estamos a jantar e, por isso, os rissóis de carne não são balas de uma shotgun do Fortnite. Ou então: já estou farto de ver séries dinamarquesas na Netflix, importas-te que vejamos agora um filme piegas falado em inglês da América?

Mas quem gosta mesmo não se amedronta perante frivolidades quotidianas, certo? Errado. São essas vírgulas no meio das frases que nos tornam interessantes e suportáveis. A distância física gera saudade, a colagem física reiterada gera peles enrugadas. E agora é o momento em que vocês me encostam à parede e atiram: isso é tudo muito bonito, mas experimenta aplicar essa filosofia em saldo num T2 apertado com paredes finas e vizinhos com recém-nascidos. Tenta aplicar essa aura zen nesse mesmo T2 com dois filhos em aulas no mesmo quarto e dois pais em teletrabalho na mesma sala. E eu, encostado à parede, engulo em seco, desvio a máscara da boca e respondo: “Sosseguem, vai ficar tudo bem”.




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