Publicidade Continue a leitura a seguir

Crónica de Pedro Ivo Carvalho: “Diga não aos repuxos de água com leds roxos”

Ciclovia da Estrada Atlântica. (Fotografia de Maria João Gala /Global Imagens)

Publicidade Continue a leitura a seguir

Os repuxos de água deram lugar às rotundas com peças escultóricas, estas precederam os anfiteatros ao ar livre e estes evoluíram para os passadiços, a que foram somadas as ciclovias, que acabaram a ser desenhadas à sôfrega por entre as letras gigantes com o nome da terra que adornam a entrada de qualquer concelho português que tenha um pingo de auto-estima. Percorremos o território e há lugares-comuns (literalmente) que se repetem. E isto não tem nada que ver com a escola que molda os autarcas, mas com a necessidade quase insaciável com que grande parte deles sucumbe às modas da intervenção no espaço público. Cidade que queira ser respeitada não pode projetar-se sem, pelo menos, uma ciclovia colorida e um passadiço ondulante. Mesmo que, um e outro, constituam um perigo para os seus utilizadores ou não vão dar a lugar nenhum, que não seja o de um gasto supérfluo dos nossos impostos.

Há um complexo de inferioridade subjacente a esta redundância estrutural: uma aldeia que quer ser vila, uma vila que ambiciona ser cidade e uma cidade que exibe tiques de metrópole. Mas se pensarmos que, há umas dezenas de anos, os votos se conquistavam pelo número de rotundas, casas mortuárias e centros de dia erguidos, não podemos deixar de sentir uma pontinha de orgulho nos nossos autarcas, em particular nos que governam fora dos grandes centros urbanos, onde é bem mais difícil abraçar as causas da urbanidade.

Depois, há outro aspeto que merece ser sublinhado: o de que uma maior intervenção no espaço público se traduz num crescente incentivo à fixação de moradores. E numa óbvia aproximação ao território onde vivem e onde apenas circulam de carro. A paisagem muda quando vamos a pé ou de bicicleta a caminho dos lugares. Por isso, não nos queixemos em demasia.

A necessidade de fruição do espaço público, sendo uma modinha nalguns casos bem irritante, é uma daquelas doenças benignas que, com muita pena nossa, nos atingiu demasiado tarde. A minha esperança é que comecemos agora a entrar naquela fase da ambição desmedida em que as coisas sejam feitas com pés e cabeça.

A pandemia potenciou as imensas virtualidades do espaço exterior e das riquezas naturais das regiões. Ninguém vai querer deslocar-se de A a B para contemplar obras faraónicas ou um repuxo de água com leds roxos no meio de uma praça. O futuro dos lugares será tão mais retumbante quanto mais aprazível for a forma como os pudermos descobrir a pé, de bicicleta ou de transportes públicos não poluentes. Esta viagem, queremos acreditar muito, já não tem volta.