Crónica de Pedro Ivo Carvalho: Aquele lugar em nós

"Há lugares que pedem banda sonora específica, mas há músicas que são, elas próprias, o lugar." (Fotografia: Freepik)
O poder regenerador e pacificador da música revela-se sempre que uma nota, uma voz, uma guitarrada, nos transporta para uma latitude que ficou guardada para a eternidade.

Todos habitamos um lugar. E esse lugar, que tantas vezes transcende a dimensão física e geográfica, é a melhor tradução de uma certa paz espiritual que nos conforta sempre que derivamos para esse refúgio. Há lugares que habitam em nós, que levamos tatuados na pele, que não se desgastam com o tempo, que sobrevivem à partida daqueles que lá estiveram connosco, lugares que nos definem. Somos, por isso, obrigados a voltar. Uma e outra vez. E quando pensamos num lugar, naquele lugar, não podemos dissociar a música que nos conduziu a essa memória. Há lugares que pedem banda sonora específica, mas há músicas, vozes, bandas, riffs de guitarra ou pianadas que são, elas próprias, o lugar. A nostalgia associada à música pode parecer um estado de alma depressivo, mas será, porventura, a forma mais elegante de vermos os anos passar por nós sem termos de nos agarrar aos quadris.

Há umas décadas, as viagens diárias que fazia de comboio para o Minho eram servidas com The Cult. O velhinho discman da Sony rodou “Love” até à náusea. Só me faltava dizer bom dia e até amanhã ao Ian Astbury para que a comunhão fosse total. Mais recentemente, esgotei a voz ao Lil Nas X enquanto desbravava a penumbra das colinas nos Açores. E guardarei sempre numa gaveta encantada do passado a voz gutural de Leonard Cohen, que me segurou ao céu das duas vezes que fui a Cuba. Depois, há recaídas clássicas: Bruce Springsteen a todas as horas, no carro, na praia, quando me entrego às páginas de um livro; Camané quando me quero desprender dos demais e curvar-me perante a beleza de uma voz que nos amarga; Rosalía nas estações todas do ano, para ouvir com a minha filha, sempre que o “Real Slim shady” do Eminem não se impõe, por determinação do herdeiro mais novo.

Se gostam de música como gostam de um lugar, façam o seguinte exercício: percorram o vosso catálogo de intérpretes ou álbuns e escolham uma faixa ao acaso. Ouçam a história que ela vos conta, entrem nesse túnel que mais ninguém conhece e deixem-se abater por esse gatilho abençoado que não mata mas marca como mais nenhum outro. Porque esse lugar em nós é uma bem urdida partitura de dias agrestes e luzidios que nunca nos deixa entregues ao silêncio. l




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend