Crónica de Paula Ferreira: uma cobra no caminho

Barcelos. (Foto: Paulo Jorge Magalhães/GI)
Um lugar pode acolher em si todo o tempo de uma vida. Uma frase de um romance que convoca memórias de um dia de caminho, de uma vida.

Como se um tempo pudesse ser um lugar”. A imagem é de Elisabeth, fascinante personagem de Outono, de Ali Smith. Fiquei com ela guardada, a rebobinar o passado que se mantém tão próximo, como se esse tempo, essas imagens, plenas de sons, cheiros e cores, continuassem comigo, embora muitos anos nos separem. A frase de Elisabeth, referindo-se ao seu improvável amigo Daniel Gluck, remeteu-me de imediato para um longo passeio, numa recente quinta-feira, que noutros anos devia ser de festa, não fosse a pandemia.

Uma passeata há muito planeada: fazer um troço do Caminho de Santiago, entre a belíssima freguesia de Rates, com a sua notável igreja românica, e Barcelos. Caminhada por campos de cultivo, bouças, aldeias em repouso. Noutra altura, num tempo sem máscaras, esses lugares estariam em festa, atravessados por procissões de meninos e meninas que, como manda a tradição, teriam feito a comunhão no dia do Corpo de Deus. Mas não houve bandas de música, nem foguetes, nem igrejas abertas engalanadas para a festa – apenas alguns peregrinos, num regresso tímido ao caminho.

Revejo os campos, os elegantes muros de xisto ao abandono, uma enorme cobra verde a serpentear valetas e a atravessar o caminho mais à frente, escorregadia, ágil, a desaparecer entre as ervas altas. E de novo a frase de Ali Smith me convoca. Pode um tempo ser um lugar?

Se não tivesse resposta, ela ser-me-ia dada, nesse dia de caminho, numa pausa à mesa, perante a travessa de rojões e a garrafa verde vinhão, numa casa onde és recebida como se fosses visita de todos os dias, onde desfilam imagens de uma vida, retratos de alguns que já nos deixaram mas nunca se desapegam de nós. A Pedra Furada, pausa na jornada para tantos peregrinos, esse tempo a assumir forma de um lugar, quase um filme a desfilar na memória de fins de tarde que terminam em longos jantares, ainda criança entre os amigos da família. E agora regressamos adultos, com saudades dos pais, do senhor Carlos, da dona Isaura e do senhor Adriano, memórias de longos desvios para se comer melão casca de carvalho, ali com garantia ser apimentado, o que o torna singular.

Sim, um lugar pode acolher em si todo o tempo de uma vida. Também por isso valeu a caminhada, e desaguamos em Barcelos em dia de feira, com cores. Música e cheiros, porque afinal o dia era de festa. Voltamos de comboio, com a menina indiana a falar ao telemóvel e o homem velho de fato a dizer-lhe que ela devia voltar para a sua terra. A cobra, de novo, sob outras vestes – e essa, sim, verdadeiramente perigosa.




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