Crónica de Paula Ferreira: três meninas e um touro

Graciosa. Fotografia: Orlando Almeida/GI
A paixão dos açorianos pelas corridas de touros à corda que preenchem o verão e são recordadas todo o ano deviam ser motivo mais que suficiente para me repelir do arquipélago.

Qual o interesse de ver um touro a correr, desenfreado, atrás de gente que o acirra por prazer? O único atrativo talvez seja aquela vontade incontrolável de rir quando se vê um indivíduo indefeso a fazer um papel ridículo. Ao vivo, nunca vi as famosas corridas de touros à corda, tropecei nelas algumas vezes em cafés açorianos, onde os vídeos com as gravações do épico espetáculo se encontram à venda como se se tratasse de pérolas da Sétima Arte. As imagens passam no ecrã, e as pessoas não se cansam de as rever – tal como outros reveem o golo de Éder, que nos deu a vitória no Europeu de Futebol de 2016.

A mim, que fico perturbada sempre que vejo um animal a ser maltratado, esta paixão açoriana pelas corridas de touros devia ser um forte motivo para me repelir do arquipélago encantado.
Há coisas que não devemos tentar perceber. Existe um momento para que isso aconteça, mesmo sem o procurarmos. Ocorreu há dias, numa noite de fim de verão, na praça de Santa Cruz onde parece confluir toda a vida da ilha Graciosa. Na esplanada do snack -bar Santa Cruz almoçam trabalhadores, a preços pouco habituais nos tempos que correm, contam anedotas de mesa para mesa, desfiam novidades, tricas políticas e histórias de viagens de barco. À noite, vários casais conversam depois do café, enquanto os filhos brincam em segurança na imensa Praça Fontes Pereira de Melo, onde os pauis, destinados a armazenar água, são simples lagos vazios nesta altura do ano, talvez devido à seca sempre presente naquela pequena ilha.

Três meninas correm arrebatadas e estridentes sob o olhar atento dos pais. Até que chega Simão, numa motinha de brincar, e tudo se transforma. Não consigo desviar o olhar daquele jogo infantil, um ir e vir sem fim, entre as araucárias da praça. E o pequeno Simão faz-me ver o incompreensível. Um menino e três meninas, seguramente nenhum andará ainda na escola primária, jogam ao faz de conta. Simulam uma corrida de touros à corda: “Eu sou o touro”, diz Simão. As meninas fogem, espavoridas, trepam para o coreto, ficam em lugar seguro a ver o touro enraivecido.

Não se aprende, está visto, o gosto pelos touros nos Açores. No dia seguinte, subi ao Monte da Senhora da Ajuda, e antes de alcançar as suas três ermidas, sentei-me nas bancadas da tourada da Graciosa, construída, entre espessa vegetação, numa antiga cratera.




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