Crónica de Paula Ferreira: O tempo das glicínias

(Fotografia: Larissa Farber/Pexels)
A alegria de outros anos perdeu-se e a festa não vai ter o colorido guardado na memória, apesar de a primavera ter explodido indiferente à pandemia.

Vamos aproveitar o sol da primavera, deixá-lo afagar a casa, e encetar as limpezas como antigamente, quando tudo era virado do avesso, tetos, armários, varandas, jardim. Depois, tratar do cabrito, ir guardando os ovos para o pão de ló, povoar as salas de flores. A Páscoa avizinha-se. É dia de festa, sejamos ou não católicos, tempo de renascimento: como comprovam as árvores de fruto floridas, as glicínias com os seus cachos lilases e brancos no arco do portão, os junquilhos no campo. Obrigo-me a manter os rituais, como se tudo fosse acontecer como no passado.

Não vai. A Queima do Judas, em tantos anos alegrou o lugar onde moro, nem sequer foi equacionada; na sede do concelho, migrou para o espaço virtual. As cerimónias que fazem desta quadra uma das mais belas e plenas de simbolismo ficaram presas em ecrãs, como se a comunhão entre as pessoas pudesse habitar esse lugar.
O domingo acordará como um domingo normal. Não passaremos a manhã à escuta, a perscrutar onde anda o compasso, os vizinhos não estarão na borda da estrada a aguardar a cruz, não entraremos pelas casas uns dos outros, alegres e fraternos, a partilhar memórias, a rever os que só regressam em dia de festa – sobre a mesa, o vinho e os doces para os que carregam Cristo na cruz retemperarem forças.

A Páscoa, para quem como eu viveu quase sempre numa aldeia, é sinónimo de dias luminosos, embora, por vezes, a chuva venha acinzentar o ambiente festivo. De todo o modo, apaguei da memória essas páscoas sem sol. A que eu guardo no coração rescende a glicínias a atapetar os caminhos, para receber o cortejo, e há os sons de campainhas lembrando que o tempo é de renascimento. Este ano, como no anterior, não será assim. Mas a mesa estará posta, a porta aberta e a cozinha exalará aromas de um dia único. Olho o futuro e interrogo-me: depois de tudo o que perdemos na longa reclusão pandémica, conseguiremos voltar a festejar com a alegria do passado? Nenhum de nós tinha sido alguma vez surpreendido por algo tão perturbador, capaz de mostrar que nada temos garantido, nem a mais cristalina celebração, que junta homens e mulheres ao redor de uma cruz – que nesse dia, em vez de simbolizar morte e sofrimento, transporta o fogo primaveril do renascer de novo. Renascer de novo, não há outra saída.




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